Vareta de cutucar estrela. Não sei o que essas palavras podem significar para você, se é que podem significar alguma coisa. Para mim, elas significam muito. Significam dor, discriminação, desrespeito e abuso. Este foi um dos apelidos que recebi do meu professor, isso mesmo, meu professor, na quarta série. Primeiro, ele me chamava de coqueiro, depois “ aperfeiçoou” para vareta de cutucar estrela. Era assim que ele se referia a mim, eram essas palavras que ele falava, em vez do meu nome, ao fazer a chamada. E era assim que muitos colegas passaram a me chamar.
Eu tinha apenas dez anos, não sabia como responder a isso, não tinha iniciativa suficiente para reclamar na diretoria, mesmo porque a hierarquia entre alunos e professores era muito marcada, muito rígida e, provavelmente, não acreditariam em mim, dariam razão ao professor e eu seria ainda mais perseguida. Hoje eu tenho 56 anos, mas ainda sinto as lágrimas enchendo os meus olhos quando me lembro dessa situação tão vexatória, do ano mais triste da minha vida escolar.
Eu não fui a única vítima da crueldade desse professor, porque isso, para mim, não tem outra denominação além de crueldade. Muitas vezes as crianças fazem esse tipo de coisa, invalidam alguém com apelidos, termos pejorativos e brincadeiras de mau gosto, mas, são crianças, ainda não têm senso crítico e maturidade suficientes para atinar no mal-estar e nas mágoas que provocam com suas palavras. E cabe aos adultos corrigi-las, ensiná-las. No entanto, quando o bullying, a ofensa, a agressão vêm de um professor, sobretudo um professor de crianças, as coisas ficam mais difíceis.
Ele me dava esses apelidos apenas porque eu era a aluna mais alta da classe. Ele me fez odiar ser alta. Tanto que, a partir desse fatídico ano de 1975, a altura, que era uma coisa que eu nem notava, porque criança não se preocupa com esse tipo de coisa, passou a ser um incômodo para mim e eu comecei a me encolher cada vez mais, para tentar parecer menor, de um tamanho mais compatível com o das outras crianças. Isso me rendeu uma hiperlordose, enriquecida com duas hérnias de disco. Falando em termos mais fáceis de entender, eu me tornei uma pessoa corcunda, graças ao apoio do meu professor da quarta série. E não se trata apenas de uma questão estética, mas de dor, muita dor, ao longo da vida toda.
Lembro de dois outros colegas que também sofriam perseguição aberta do nosso professor. Um deles era filho de japoneses. Para ele tinha até uma musiquinha, no ritmo do Hino da Independência: “Japonês da cara chata, come queijo com barata!”. Lembro que ele debruçava na carteira e chorava. O outro era o José do Carmo. De todos, talvez tenha sido o que mais sofreu. O professor fez uma gracinha com o sobrenome dele, chamando-o de “Barboleta”. Ele era um menino delicado, por isso era também chamado de “Zé Muié” e de “Mariquinha”. Lembro um dia que o professor levou uma barata de borracha e, enquanto fazíamos a lição, ele começou a caminhar entre as carteiras e, quando passou perto do José do Carmo, jogou a barata dentro da camisa dele. O menino saiu correndo pela sala, gritando e chorando, e os alunos rindo, fazendo a maior algazarra. Ele saiu da sala, eu fui atrás dele, ele só chorava, não queria voltar mais.
O professor organizou uma festa junina e me convidou para ser a noiva, porque eu era a menina mais alta, e para noivo, o Toninho, o menino mais baixo da turma. Ele mal passava da minha cintura, formamos um casal bizarro. Nosso professor fez o texto do casamento caipira em forma de poesia, com versos assim: “Seu dotô, casá eu caso, mas como é que vou fazê? Pra beijá minha Chiquinha, vou precisá de crescê”, ”Seu dotô, casá eu caso, mas preciso de uma escada, a Chiquinha mais parece uma vara empinada!”. Mais um apelido para a coleção!
São lembranças muito doloridas, mas, colocá-las para fora faz bem. Da mesma forma que usei este espaço algumas edições atrás para homenagear o Zé, meu professor de Filosofia, que marcou tão positivamente a minha vida, é necessário fazer este paralelo, porque há professores e professores… Aliás, depois da publicação daquele artigo, tive notícias do Zé. Infelizmente, ele morreu no fim do ano passado. Que pena que demorei tanto para escrever sobre ele!
Bem, voltemos ao professor da quarta série. Ele também morreu há alguns anos. Como as memórias que tenho dele não são boas, prefiro não citar o seu nome. Quem estudou comigo na época e ler este artigo se lembrará, e isto basta. Ele foi uma pessoa respeitada, fez coisas boas para a cultura da nossa cidade, porque ninguém é totalmente ruim, apenas, não tinha a necessária habilidade para ser professor de crianças. Talvez tivesse se dado bem como comediante, como humorista, que cria piadas em cima da desgraça alheia, mas, como professor, infelizmente, deixou alguns rastros de miséria na vida dos meninos e meninas que lhe foram confiados.
Dia desses, partilhando essa história num grupo que discutia sobre pessoas invalidadoras, uma colega, comovida com minhas palavras, me mandou uma mensagem dizendo: “Você se tornou uma coletora de estrelas…” Fiquei muito emocionada, nunca tinha visto a situação sob esse prisma, então, pensei com mais profundidade e concluí que não posso dizer que não tenha aprendido nada com esse professor, porque aprendi. A partir dos exemplos negativos dele, aprendi a tratar as pessoas com respeito, a não fazer pilhéria com as fraquezas, dificuldades ou deficiências dos outros. Ainda hoje, quando ouço algum comentário ou brincadeira idiota sobre o peso, a altura, a cor, o cabelo, a aparência ou opção sexual de alguém, fico tentando imaginar se quem age dessa forma tem a mínima noção da dor que está provocando, ou do estrago que está fazendo se as gracinhas forem dirigidas a uma criança. Ainda bem que os professores não são mais assim…