Há poucos dias a Globo estreou a minissérie Vade Retro. Não sei exatamente do que se trata porque quase não assisto televisão, mas, como há tempos eu tencionava escrever um artigo com esse título, vou pegar o gancho da TV e dar vasão ao que expressão “vade retro” suscita em meu pensamento.
Seguida do mais conhecido nome do senhor do mal, essa expressão se tornou popular e usada em larga escala com a conotação brincalhona de afastar qualquer coisa ruim, sobretudo pessoas que nos incomodam ou dizem algo que não gostamos. Da mesma forma, dizemos que certas pessoas são um “carma” ou um “encosto”, termos tomados de empréstimo de algumas crenças religiosas e comumente usados fora do seu real contexto. O “vade retro” faz parte de uma fórmula de exorcismo do século XV, atribuída a São Bento. A fórmula completa é usada até hoje pelos raros sacerdotes que ainda praticam o exorcismo. As primeiras letras de cada uma das palavras da fórmula estão cunhadas na medalha de São Bento, bastante usada como amuleto por católicos e não católicos, em forma de pingentes, adesivos de carros, broches e até mesmo em tatuagens, formando uma expressão ininteligível, pois, à primeira vista, se trata apenas de letras desconexas que não formam nenhuma palavra.
Bem, mas, todo esse preâmbulo talvez não passe de “cultura inútil”, o que importa mesmo é o que nos motiva a dizer em bom latim: Afasta-te de mim! (Vade retro!). Há determinadas situações em nossas vidas que parecem ser regidas pelo mal supremo, situações e pessoas que provocam essas situações. Numa escala ampla, quando vemos o lodo que escorre dos esquemas de corrupção que envolvem nossos políticos e as Odebrechts da vida ou o sangue que escorre das chacinas e tantas outras formas de violência que, se estão longe de nós, trazemos para nossas casas ao simples clique de um botãozinho do controle remoto da nossa TV, somos obrigados a pensar nessa situação do mal que parece envolver todos os recantos da vida, como uma sombra viscosa, pegajosa, que entra por todas as frestas e invade todos os setores, dos alicerces aos sótãos da sociedade.
Mas, de propinas à carne podre, libertação do goleiro Bruno, punição das vítimas e enaltecimento dos criminosos, com perdão da expressão, acabamos ficando um pouco de saco cheio de tanto do mesmo, sempre, continuamente e superlativamente. Porém, também na nossa vida particular somos confrontados por esse espírito do mal e há pessoas que, só de vermos, já temos vontade de tascar um “vade retro” e jogar sal grosso e água benta pra espantar pra bem longe. É até difícil acreditar que exista tanto mal, que existam pessoas tão cruéis que encontrem satisfação em fazer o outro sofrer apenas pelo prazer que isso lhes proporciona. As histórias de contos de fada que embalaram nossa infância estão recheadas dessa personificação do mal, geralmente encarnada por uma madrasta, mas essas histórias acabam sendo ingênuas diante do mal que enfrentamos de verdade, todos os dias e que nos deixam indignados, nos tiram o fôlego e a esperança.
É muito difícil conviver com maldosos contumazes, com pessoas que não medem esforços para magoar e que são mestras em tentar virar o jogo se fazendo de vítimas ou então dizem que são daquele jeito e pronto, que quem quiser conviver com elas tem que aceitá-las e aturá-las como são. Isso chega a ser enlouquecedor e pode desestruturar as pessoas mais equilibradas. Dizem que o mal triunfa porque o bem é tímido. Eu admito que isso tem um fundo de verdade. Mais que tímido, o bem é bom, é simples, é ingênuo e acredita que pode mudar o mundo, as pessoas as circunstâncias e talvez possa mesmo, mas esse é um terreno pantanoso.
Para mim o bem e o mal são fatos. Fatos concretos e palpáveis e não apenas conceitos relativos. Claro, todos nós temos lados bons e lados ruins, mas, não é a isso que me refiro. O mal que me indigna é aquele mal consciente, aquele que quer, sim, prejudicar os outros, é o mal dos maus, que tentam vencer o bem dos bons. Costuma-se afirmar que todas as pessoas, por pior que pareçam sempre têm algo de bom, algo de positivo, não discordo disso, mas, o mal é opressor, dominador e as pessoas que a ele se devotam acabam consumidas por ele de tal forma que já se torna impossível ver qualquer vestígio de bem que elas possam ter.
Há muitas situações em que é possível tentar mudar, dialogar, envidar esforços para se chegar a um denominador comum e vencer os conflitos, porém, há situações em que não resta alternativa a não ser a expressão tomada da fórmula de São Bento e, se o “vade retro” não funciona e aquilo ou aqueles que nos afligem não se afastam, que afastemo-nos nós. Aquele conceito que diz: “se não pode vencer o inimigo, junte-se a ele”, não é um bom conselho, porque em muitas circunstâncias o melhor a fazer – ou a única coisa sensata a fazer – é mandar o inimigo voltar para os quintos dos infernos de onde saiu e fugirmos dele, ficarmos longe dele, não deixarmos que ele nos alcance, porque, se puder, ele vai nos destruir, vai fazer de tudo para minar as nossas energias e nos ver no chão, talvez simplesmente para ficar bem consigo mesmo quando nosso sucesso, nossa alegria, nossa paz, nosso estilo de vida o incomoda e lhe provoca inveja tão incontrolável que ele mal suporta a nossa presença.
Para que o bem triunfe, precisamos deixar de ser ingênuos, deixar de ser bobos, deixar de permitir que nos ataquem, nos machuquem, nos lesem e nos violentem e, nesses casos, fugir, sair de perto, tirar o time de campo é muito melhor do que ficar acreditando que um dia um milagre acontecerá e a bruxa malvada acordará boazinha e todos viverão felizes para sempre. Na vida real, não é assim que funciona e, se não vai de retro o outro, saiamos de perto nós! Não fazer o mal já é um bem, porém, bem maior é não deixar que o mal seja feito a nós. Se podemos evitar, por que não fazê-lo? Afinal nem funcionário do Instituto Butantã faz carinho em cabeça de serpente porque sabe que a sua boa vontade não evita a mordida da víbora e tão menos neutraliza o seu veneno.