Todo mundo sonha. Há sonhos que são arrojados, grandiosos, sofisticados e demandam bastante tempo, esforço e dinheiro para se tornarem realidade. Outros são complicados, difíceis de serem colocados em prática; alguns, dessa categoria, até acabam sendo descartados e esquecidos. Há sonhos que são tão especiais e abrangentes que conseguem mudar a vida do sonhador e de outras pessoas, esses costumam ser os sonhos dos visionários, dos desbravadores, dos inventores e descobridores que mudam o rumo das coisas. E há sonhos que são simples e pequenos, nem sempre fáceis ou possíveis de executar pela sua própria singeleza e quase insignificância.
Eu tinha oito anos quando meus pais se separaram e meu pai pagou apenas o primeiro mês da pensão alimentícia. Estando para completar um ano de pensão atrasada, o advogado que assistiu a minha mãe propôs a ela entrar com uma ação que, sem dúvida, se ele não pagasse, o colocaria na prisão – isso já era sério, desde aquela época. Apesar da labuta, da vida difícil que levava, trabalhando como boia fria para sustentar a casa, com muita serenidade ela disse que não, explicando que um pai que deixa de pagar a pensão a um filho pequeno não merece ser preso, porque nem merece ser considerado pai.
E foi com essa mentalidade resoluta que aquela mulher simples e forte me ensinou o caminho da independência, que eu trilhei desde sempre, sendo responsável pela minha vida, minhas despesas, meu sustento ou, quando muito, dividindo tudo por igual. Mas, lá dentro de mim, bem no fundo do meu coração, havia um sonho, da categoria dos simples e pequenos e – por que não dizer? – até bobos. Algumas vezes comentei sobre ele com amigas e fui duramente criticada, como se fosse um crime ou uma heresia sonhar com algo tão banal. Sabem que sonho era esse? Era o de ser apenas uma dona de casa, sustentada pelo marido. Apesar de pertencer a uma geração de mulheres independentes, que cresceram com o feminismo, creio não ser a única que um dia desejou tal coisa. Tenho certeza de que há muitas mulheres que trabalham em serviços dos quais não gostam por serem obrigadas, porque precisam ajudar nas despesas da casa ou sustentar a casa sozinhas, mas, se pudessem, largariam tudo para cuidar da casa e dos filhos, independente do nível cultural que tenham.
Enfim, um dia, depois de circular pelo mundo acadêmico e desenvolver carreira numa estatal, sem nem me dar direito conta disso, me vi deixando a capital, casando, mudando para uma tranquila e aprazível cidadezinha do interior e me desligando do emprego num plano de demissão voluntária. O dinheiro que recebi como indenização apliquei na construção de uma casa e, embora cercada de livros e envolvida com a escrita, quando dei por mim estava sendo sustentada pelo meu marido e vivendo a pacata, agradável e cansativa vida de dona de casa, como era usual dizer até algumas décadas atrás, “do lar”.
Como já mencionei várias vezes aqui, comecei minha vida profissional como empregada doméstica, mas, nos meus 53 anos, nunca tinha vivido essa encantadora experiência de cuidar da minha casa em tempo integral: limpar, lavar, passar, cozinhar. Claro, sempre fiz isso, mas, quando a gente trabalha fora, em casa a gente faz o que dá, como dá e quando dá. Acabamos nem prestando atenção a muitas coisas, a detalhes que só vemos quando passamos a nos dedicar a isso como atividade principal. Bem, a parte de ser sustentada, de ter um provedor e administrar o orçamento doméstico fazendo os malabarismos necessários para a sobrevivência com um salário só, tem sido bem interessante. A parte de elaborar o cardápio e, finalmente, poder usar os livros e cadernos de receitas guardados há anos também tem sido extremamente prazerosa, mas, Deus do Céu, como é trabalhoso cuidar de uma casa com todos os afazeres que se somam e se repetem cotidianamente! Quantas demandas uma casa suscita! Não é à toa que algumas mulheres acabam estressadas, desanimadas e desiludidas.
Pode ser que, se tivesse passado a vida fazendo isso, eu também estivesse completamente esgotada. No entanto, como o que estou fazendo é fruto de uma escolha, embora me canse bastante para dar conta de tudo, consigo ver encanto até nas tarefas mais corriqueiras, chatas e estafantes. Meu marido é um companheirão e me ajuda sempre que pode, mas, a rotina, a constância, a repetição são minhas. Descobri que o grande segredo é não fazer tudo sempre igual. É óbvio que não dá para inventar muitos modos de varrer e passar pano no chão, de lavar e passar a roupa, de limpar banheiro e arrumar a cozinha, mas a gente pode sair do automático quando faz isso, pode tomar um copo de vinho entre uma tarefa e outra, ou um suco, um refri, uma cervejinha, um chá, um café, dependendo do gosto de cada uma. Dá para colocar música para ouvir e variar a trilha sonora para dar nuances diferentes aos dias que parecem sempre iguais. Ligar o computador ou o celular e ouvir uma palestra interessante enquanto lida com o trivial.
Serviço de casa é chato sempre, assim como a maioria das tarefas repetitivas, onde quer que as executemos. O segredo é deixar a afirmação do Chico Buarque apenas no cotidiano de suas canções e nos recusarmos a fazer tudo sempre igual, nos apoiarmos no cabo da vassoura e observarmos os matizes da luz do sol que entra pela janela, estender a roupa no varal e erguer os olhos para o azul do céu e nos encantarmos com ele porque na vida, por mais banal e repetitiva que ela possa parecer, jamais existirá um dia igual ao outro. É só uma questão de estarmos atentas e não nos deixarmos vencer pela mesmice da rotina, porque, se temos saúde, se temos disposição, se temos uma casa para cuidar, uma família para nutrir, amar e compartilhar, só dependerá de nós transformar cada pequena tarefa em algo especial e único.
Nesta sexta-feira, finalmente, depois de meses de espera, levarei meus documentos ao INSS para dar entrada na aposentadoria e logo deixarei a fase de ser sustentada pelo marido, mas, entre um artigo e um conto, um romance e uma poesia, continuarei sendo uma dona de casa, sempre muito feliz por ter um lar, doce lar para cuidar.