“Teus filhos não são teus filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de ti, mas não de ti.
E embora vivam contigo, não te pertencem.
Podes outorgar-lhes teu amor, mas não teus pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas”.
Há uma linha da psicologia que trabalha com o contraste entre a sombra e a luz que existe em todos nós. Excluindo góticos, emos, fabricantes de lâmpadas e autores de histórias de vampiros, ninguém gosta de escuro. Um mesmo lugar onde ficamos tranquilamente quando está claro nos enche de pavor e medo quando está escuro. E há escuros ainda mais profundos e amedrontadores do que aquele provocado pela ausência da luz natural ou elétrica, são os escuros que trazemos em nossas almas, aqueles segredos que guardamos dentro dos nossos corações.
Muitas vezes, fazemos malabarismos dignos dos mais exímios contorcionistas a fim de ocultar essas áreas que nos envergonham, nos humilham e nos fazem sofrer. É como se, ao expormos nossos lados negros, nos tornássemos menos dignos de respeito, carinho, amor e admiração. Às vezes o nosso escuro vem de nós mesmos, de vícios, de defeitos que não conseguimos vencer, de algum grande erro cometido no passado, porém, muitas vezes, eles não vêm de nós, embora nos afetem completamente. A melhor forma de vencer o escuro é acender a luz e a única maneira de fazer isso é nos expondo, afinal, a dor de ninguém é única e falar da nossa pode acender um farol sobre a dor de outros. O próprio Cristo, ao ser crucificado, não o foi sozinho, havia um condenado de cada lado de sua cruz.
Tenho uma grande amiga que teve uma filha por amorosa opção e, embora a filha não tenha nascido de sua barriga, foi amada e cuidada com extremos de zelo e afeto e, no entanto, mal desabrochou para a vida, a linda menina que vi crescer, enveredou por maus caminhos, envolveu-se com drogas, com gente de péssima índole e com tudo de ruim que se possa imaginar para a vida de um jovem. Suas atitudes rasgam o coração de minha amiga querida, arrancam lágrimas de sua alma que já tem longas áreas ressecadas, como desertos. Ninguém que conhece essas duas pessoas consegue entender tamanho descompasso, tamanha amargura, mas, todos se surpreendem com a força da esperança dessa mãe que não desiste da filha, que não desiste de acreditar que um dia tudo se modificará, apesar de cada dia as coisas só piorarem.
Vivo ao lado de alguém cujo filho, da mesma idade da filha de minha amiga, escolheu partir por vontade própria. Um menino lindo, com uma inteligência acima da média, um menino bom, mas que foi tragado pela depressão e, não suportando mais remédios, limitações, dor emocional, incapacidade de cursar a faculdade, deu cabo da própria vida. Também conheço mais de uma mãe cujos filhos são bandidos e gastam o vigor da juventude na cela fétida de uma cadeia, onde essas mães se obrigam a ir para vê-los, abraçá-los brevemente, estar com eles algumas poucas horas uma ou duas vezes por mês. E há filhos e filhas que se prostituem, que vivem em lugares que seus pais não podem visitar nem em pensamento. Há pais que têm filhos que são assassinos, traficantes, corruptos.
Desde que um filho chega ao mundo, pais e mães adoram mostrá-los, falar sobre eles, dividir com as pessoas, orgulhosos, os seus feitos, as suas conquistas, os seus dons. Mas, nenhum pai gosta de admitir, de dividir, de expor que seus filhos são viciados, ladrões, suicidas, assassinos, corruptos, desonestos, pessoas de má índole. Ter um filho nessas condições é como ter fracassado na vida, é como ter perdido tudo, mesmo que se tenha mais filhos que sejam boas pessoas, honestos, sem vícios, lutadores, vencedores. A escuridão do fracasso de um filho é das mais difíceis de suportar e falar sobre ela é morrer um pouco.
Muitas pessoas que me conhecem e sabem que tenho um filho padre afirmam me invejar e dizem: “Você teve sorte, você é que é feliz!” e, observando a beleza e sacralidade que cercam a vida do meu filho, sequer imaginam que também tenho minhas mazelas, que também tenho uma área escura em contraste com essa aparente luz. E também para mim, falar sobre isso é tão doloroso quanto o é para os pais que têm seus filhos trilhando estradas difíceis e tortuosas. Um pequeno exemplo é que o meu filho passa mais de dois anos sem me visitar e, quando o faz, nunca pode vir à minha casa sozinho e ser apenas filho, pois faz parte das regras da ordem dele que os religiosos andem sempre em dois, assim sendo, não podemos privar da doce intimidade da convivência entre mãe e filho.
A grande questão, no entanto, não é o que os nossos filhos fazem com a vida deles, mas como nós nos conduzimos diante disso. Uma das tarefas mais difíceis, na qual pouquíssimos pais e mães conseguem se sair bem, é compreender que nossos filhos vêm de nós, no entanto, não são prolongamentos nossos. É comum – e até natural – que, após termos filhos, passemos a colocá-los como centro de nossas atenções, vivermos em função deles, mas, não podemos nos esquecer que, antes da vinda deles, éramos indivíduos e indivíduos continuamos sendo depois deles. Saber separar as nossas vidas das vidas dos nossos filhos é difícil, mas, imprescindível. Pelo bem deles, mas, sobretudo, para o nosso próprio bem.
Como diz o poeta Gibran Kalil Gibran, “nossos filhos vêm através de nós, mas não são nossos”. Nós somos apenas os veículos através dos quais eles se fazem pessoas. Ainda que suas atitudes nos machuquem ao extremo, não podemos deixar que essa sombra, esse escuro eclipse a nossa luz. Embora pais, nós também somos filhos, filhos de nossos pais e filhos de Deus e, como tais, responsáveis por nossas vidas e nossas felicidades. Viver em função dos filhos, principalmente quando eles já são adultos, é cercear o nosso próprio direito à felicidade e atribuir a eles um peso que não podem e nem devem carregar.
Tampouco devemos nos culpar pelas escolhas deles, sobretudo aquelas que os conduzem a aparentes fracassos e quedas. Ninguém ensina o filho a usar drogas, a praticar o mal, a ser indiferente. Se isso acontece, se deve às escolhas deles que, ainda que não compreendamos e nem aceitemos de bom grado, devemos respeitar, tirar nosso time de campo e cuidar de nós mesmos, pois, um dia, cada um prestará contas de seus atos e nós só poderemos responder por nós.
É o ideal de todo pai e de toda mãe ter bons filhos, mas, ainda que não tenhamos filhos tão bons e amorosos quanto gostaríamos, ainda que tenhamos maus filhos, é importante não perdermos de vista que eles não são nossos prolongamentos, que o cordão umbilical cai cerca de sete dias após o nascimento e que cada um de nós – pais e filhos – têm duas pernas para caminhar por si. Tocar-se, encontrar-se, integrar-se, mas, cada um dentro de sua realidade, cada um vivendo a própria vida, seja ela a vida que for.