Durante nossa existência, há alguns significativos ritos de passagem que marcam a transição de uma fase à outra. No catolicismo, logo nos primeiros meses de vida, passa-se pelo primeiro rito, o batismo, que simboliza a mudança do estado pagão para o estado cristão, depois, vem a Primeira Eucaristia, por volta dos dez anos. Em outras religiões cristãs o batismo também é realizado, com o mesmo significado, mas somente na idade adulta. Na região judaica há o bar mitzvah para os meninos, ao atingirem 13 anos e o bat mitzvah para as meninas, ao completarem 12 anos, indicando a entrada na maioridade religiosa. Esse tipo de cerimônia, com pequenas variações, se dá em praticamente todas as religiões.
Mas, não é apenas no âmbito religioso que isso acontece. Festas de noivado (cada vez mais raras em nossos dias), chás de cozinha, despedidas de solteiro e o próprio casamento também são importantes e tradicionais ritos de passagem, assim como as festas de 15 anos, a colação de grau, os bailes de formatura, tirar a carteira de motorista ao completar 18 anos. O primeiro beijo, o primeiro encontro sexual. As bodas de prata, de ouro (que também estão rareando, devido à brevidade dos casamentos modernos) e, por último, as cerimônias fúnebres, marcando a derradeira passagem.
Enfim, há festas e cerimônias consagradas que, de certa forma, fazem parte da vida das pessoas e não passar por algumas delas é como ficar faltando um pedaço. Mas, além dessas cerimônias que tem um caráter mais pessoal, mais íntimo, há outros ritos, menores, mas também marcantes, que se repetem mais amiúde. A festa de Ano Novo é uma delas e é de uma significativa importância simbólica. Ao longo do ano, vamos acumulando problemas que não conseguimos resolver, decisões que deixamos para depois, atitudes que protelamos, sonhos que negligenciamos, dívidas que não conseguimos pagar.
Entre essa miríade de fatos de variadas proporções, que pesam sobre nós, vamos encaixando, aqui e ali, na medida do possível, alguns momentos de prazer e felicidade. Mas, quando chega novembro… Ah, quando chega novembro tudo começa a se modificar! Novembro tem a mesma proporção da sexta-feira, o mais aguardado dia da semana, por ser véspera do sempre ansiado e nem sempre bem aproveitado fim de semana. Novembro antecede dezembro, o mês do Natal, das festas, das compras, das comilanças, das confraternizações, da curtição, das férias para muitos, enfim, O MÊS! Na nossa linha de comparação com os dias da semana, o nosso esplendoroso sábado, que antecede o mais aguardado dos domingos: o Ano Novo! Um espetacular rito de passagem que para muitos significa fogos, roupas brancas, banhos de mar à meia noite, champagne, retrospectiva, viagens, abraços, sopa de lentilha, sementes de romã, calcinhas e cuecas amarelas para atrair dinheiro, mas, invariavelmente, para todos, até mesmo para os que vão dormir antes da meia noite e não comemoram ou para os judeus, que usam outro calendário, o Ano Novo possui o mais fantástico dos significados: a morte do Ano Velho, o fim de tudo de ruim que arrastamos durante o ano que passou e novos planos, novas esperanças, novas perspectivas.
Não sei quando o Ano Novo começou a ter esse significado tão majestoso, tão mágico, tão mítico em nossa História e fico imaginando como seria se, em vez de dividido em fatias de 365 dias, o tempo fosse contínuo, sem essa ponte entre o dezembro e o janeiro, sem essa transição festiva e essa conotação de renovação. Creio que, além de ser impronunciável uma data de milênios, sem a fragmentação em anos, não teríamos aniversário, envelheceríamos sem ter idade e perderíamos importantes referências que estão ligadas às datas. Um dia já foi assim e o calendário, certamente, representa uma evolução do gênero humano. Entretanto, em janeiro, o que há de novo debaixo do sol?
Dezembro se foi, 2016 acabou e janeiro já está quase na metade e as nossas dívidas continuam, algumas, se não pagas nas datas, acrescidas de mais juros e correções monetárias e já de mãos dadas com o IPVA, com o IPTU. Nossos problemas não solucionados não recuaram diante da imensa barreira de fogos de artifício dos festejos de Ano Novo e estão todinhos ao nosso redor, abertos a se somarem aos que vamos adquirir em 2017. As pendências, os sonhos meio amassados, um tanto enfraquecidos, tudo o que postergamos, o que fingimos não ver e que tivemos a infantil esperança de que 2016 levaria consigo, que desapareceria num passe de mágica, como o fogo fátuo dos fogos que enfeitam o réveillon, continua aí, vivinho como antes.
Não sei se um dia aprenderemos a conviver com nossos desafios e dificuldades tão logo eles apareçam e nos livrarmos deles em janeiro, em fevereiro, em março… sem enrolar, sem empurrar com a barriga até novembro, com a vã esperança de que em dezembro eles se dissolvam e que entremos em janeiro leves e limpos como uma folha em branco, como um bebê recém chegado ao mundo. Esse talvez seja o segredo da felicidade, mas, como a maioria, senão todos os meus semelhantes, eu ainda não aprendi tal eficácia e por isso, meu janeiro está povoado de imagens bens conhecidas, às quais eu tenho de acordar todos os dias e dizer bom dia, porque, até que eu aprenda a resolvê-las, a eliminá-las, a me livrar delas, elas continuarão aqui, impedindo que os momentos de prazer e felicidade sejam plenos e não apenas fortuitos. Quem sabe um dia, entre janeiro e dezembro, a gente encontre a solução…