O cemitério de Monte Alto é um dos lugares mais antigos em minha memória. Quando pequena, eu tinha medo, mas, depois que cresci, logo me apaixonei por aquele magnífico jardim. Quando morava na cidade, sempre que recebia uma visita, fazia questão de levar para conhecer o lugar, e sempre brincava, dizendo que o cemitério de Monte Alto é tão bonito que dá até vontade de morrer. Conheci vários outros, mas, nunca encontrei um que o superasse. Por incrível que pareça, ele não é lúgubre, opressor. É claro, aberto, bem arborizado, sempre colorido por muitas flores.
A frase que usei como título deste artigo está escrita no alto do portão principal e é também a epígrafe de um pequeno poema que escrevi em 1983, quando tinha 18 anos. Esse, como muitos outros, escrevi dentro do cemitério, sentada num banco, embaixo de uma árvore. Um lugar que era meu, cercado de silêncio, um pouco de mistério, mas, sobretudo, muita paz e tranquilidade. Quase todos os sábados eu podia ser encontrada lá, sentada no mesmo banco, sempre com papel e caneta, escrevendo. Às vezes lendo.
Embora não soubesse o significado daquelas palavras, eu achava a frase estonteante, forte, plena. Um dia anotei, levei para a escola e pedi para o meu professor de português traduzir. Ele fez uma tradução livre: “Da terra vieste, para a terra hás de voltar”. Hoje sei que não tem nenhuma terra naquela expressão, isso foi por conta dele, das crenças dele, da lógica dele. A tradução literal é: “Volta para o lugar de onde vieste.” Não vim da terra, então, não é para lá que devo voltar, embora meu corpo fique, mas, eu não sou apenas o meu corpo, portanto, a minha tradução seria: “Do céu vieste, para o céu hás de voltar.”
Com o passar dos anos, pessoas que eu amava começaram a ir ao cemitério e não mais voltar. A fila foi puxada pelo meu primeiro amor, José Henrique Marcelino, um menino lindo que eu amava à distância e que nem sabia que eu existia. Ele foi embora em 1980, com apenas 19 anos. Escolheu partir. Uma tristeza que até hoje guardo dentro de mim e, mesmo depois de tantos anos, ainda rezo por ele, inesquecível. Saudade eterna.
Foram alguns conhecidos e, em 1993, foi a minha mãe. Dor dilacerante. Depois foi a minha sobrinha, de apenas 15 anos e, mais tarde, o meu irmão e o meu pai, com um intervalo de apenas cinco dias um do outro. Mais recentemente, minha cunhada.
Foram muitos anônimos e também algumas figuras ilustres. Para lá foi o Velho Canale, o Dr. Mazza, o Gilbertão, o Dr. Rodrigues. Foi o Didico e a Veia Ida, duas figuras que nos punham medo; ele, por ser do Juizado de Menores, algo apavorante para as crianças bobinhas da minha época, e ela, porque corria atrás da gente ameaçando com a sua bengala. Andava sempre de roupas escuras, provavelmente um luto nunca tirado, lenço na cabeça e um saco nas costas. E, quando passava, os meninos gritavam: “Veia Ida! Veia Ida!” e lá se ia a velha correndo atrás da molecada, brandindo a sua bengala.
Lá ficou também o ilustre fundador da cidade, Porfírio Luís de Alcântara Pimentel, e ficou o Confusão, o Pepito, a Dona Pina do Bar da Bocha. Na década de 90, uma grande quantidade de jovens: Livinho da Farmácia, Xexéu, Chico Som, Solinha, Joãozinho Aydar, todos colhidos por uma mesma devastadora doença.
Para lá também foi a Rosa, encontrar com o Gilberto, e foram os pais e o irmão de minha querida Taína Collatrelli. Quantas lágrimas, quantas saudades, mas, por mais triste que seja a despedida de um ente querido, não dá para ser demasiada essa tristeza, porque a gente entra naquele cemitério tão lindo e tem a certeza de que nossos falecidos só usaram aquele lugar como um portal para entrar no Céu.
Ainda hoje, quando visito Monte Alto, não deixo de ir ao cemitério e mantenho o hábito de andar por suas alamedas, lendo epitáfios e vendo as fotos sobre os túmulos, as idades com que as pessoas morreram, e penso: “Ainda bem que não serei enterrada aqui, senão, nunca que eu conseguiria subir, porque esse lugar é bonito demais! Acabaria virando alma penada!” Já comprei meu túmulo, num cemitério que tem um nome pomposo, “Colina dos Flamboyants”, em Mogi Mirim. É um lugar diferente, um imenso gramado, e os túmulos têm apenas uma plaquinha no chão, não pode construir nada, nem colocar estátuas ou grandes vasos. No máximo umas flores no chão, que são retiradas tão logo murchem.
Estou escrevendo isso porque fiquei muito feliz ao tomar conhecimento do projeto do Mauro Cavaletti e do Bicudo de tombamento do Campo Santo. Iniciativa brilhante de preservar aquele imenso jardim onde florescem pinheiros, flores, memórias e saudades. Parabéns meninos, esse projeto foi sensacional! Tomo a liberdade de deixar aqui o poeminha que escrevi numa de minhas muitas tardes de sábado, contemplando a última morada.
Latifúndio
No silêncio do campo santo
o inverno vem soprar seus ventos mansos
para acariciar a quietude do seu esquecimento.
A solidão é única, ali tudo é igual,
não há distinção de terra,
a mesma que consumiu, na vida, suas ambições,
consome agora, na morte,
com a mesma displicência,
o evoluir de sua podridão.
(Cemitério de Monte Alto – 1983)