Como os leitores têm conhecimento, sábado passado ocorreu o lançamento, em Monte Alto, de meus livros “Elogio à loucura” e “O chapéu de Alberto”. O evento se deu no Bar Studio 8, lugar agradável e aconchegante, onde eu e meus convidados tivemos uma ótima acolhida. Durante a noite festiva, tive reencontros memoráveis, entre eles, com minha primeira professora de português, Dona Carmen Perez Nunes que, com a elegância, charme e lucidez de seus 90 anos, foi prestigiar a aluna que ela tanto incentivou.
Uma festa, por mais perfeita e agradável que seja, dura três, quatro horas e, muitas vezes, o fundamental da história acontece durante a sua preparação. Com essa festa de lançamento não foi diferente. Foi uma semana inteira de preparativos, confecção e entrega de convites, contatos, visitas, telefonemas, entrevistas, enfim, providências várias para que tudo saísse da melhor forma possível. O evento foi um sucesso, e deveu-se, sobretudo, à dedicação e entusiasmo da amiga Natalina Collatrelli, que me hospedou, me guiou pela cidade e me desenroscou quando a conversa se encompridava muito, com o risco de comprometer nossa agenda cheia.
Foram dias exaustivos, porém, plenos em toda a sua significação. Durante a agitada semana, que começou gelada e terminou bem quente, tive vários e emocionantes reencontros com pessoas que não via há anos, algumas, há décadas. Assim, foi-se construindo uma trajetória que serviu como sustentação para a noite em que pude colocar um lindo vestido, me enfeitar, rir meu melhor riso e receber, carinhosamente, um a um, os amigos e leitores que foram prestigiar meu trabalho.
De câmera em punho, meu amado marido, Henrique Campos, registrou cada momento, eternizando as mais diversas emoções. Houve surpresa, risos, lágrimas, saudades saciadas e abraços, muitos e calorosos abraços. No entanto, houve alguns reencontros que a objetiva de meu doce Henrique não registrou, alguns deles ocorridos durante a semana e outros, ali mesmo, naquela noite, mas de uma ordem acima do que os olhos podiam ver e a lente da máquina registrar. Foram os encontros que tive comigo mesma, com as pessoas que fui e até mesmo com a pessoa que serei doravante.
Ao passar pelo local da minha antiga casa da Rua Carlos Kielander, demolida há cerca de um ano, reencontrei a Izildinha de cinco anos, com uma lata na mão, recolhendo cocô de cavalo para a mãezinha adubar a horta. Obviamente, encontrei também os cavalos que trotavam pela rua descalça, levantando poeira e encantando os ouvidos da menina com seu resfolegar e barulho dos cascos sobre a terra dura. Na escola Jeremias de Paula Eduardo, enquanto a Isa conversava com os alunos, a Izildinha se debruçava sobre a cerca de arame farpado da escola para receber o lanche de pão com paçoquinha vendido pelo Sr. Darcy Bernacci. Ali reencontrei também a menininha morena, com a blusinha branca, sainha de xadrez preto e branco, sapato colegial e meias 3/4, trêmula e assustada diante da professora que ensinava as primeiras lições da cartilha Caminho Suave. E brinquei de roda com ela, no pátio, de mãos dadas com outras meninas que já não sei por onde andam.
Caminhando um pouco mais pelas ruas e pelo tempo, encontrei a adolescente visionária, tentando domar os seus sonhos vigorosos, como uma manada de búfalos selvagens. Por um momento, temi que a mocinha, em aparência frágil, não desse conta da tarefa hercúlea, mas, se eu estava ali, olhando para ela, é porque ela tinha, sim, dado conta do recado. Entrei na igreja matriz e me deparei com um cálice sobre o altar mor. Estranhei, pois não era horário de missa e a nave estava vazia. Arrisquei me aproximar e, qual não foi minha surpresa ao ver que, dentro do cálice, em vez de vinho, havia apenas água. Toquei de leve com o dedo e experimentei, salgada. Então, do alto, de onde nos contempla, o Bom Jesus me sorriu dizendo: “Filha, este é o cálice onde recolhi suas lágrimas ao longo de tantos anos. Mas, veja, em que vou transformá-las…” Ajoelhada, fechei os olhos e me entreguei à mais delicada ternura, enquanto recebia, das mãos de meu primeiro grande amigo, um colar de pérolas feito com as lágrimas recolhidas naquele cálice de amor. Usei-o na noite de sábado e caiu muito bem com meu vestido de gala.
Passando pela Santa Casa, vi minha mãe embalando-me no colo logo após a minha chegada e, num outro ponto da maternidade, encontrei a mim mesma acariciando os fartos cabelos de meu bebê, enquanto o amamentava. No pronto-socorro, encontrei a menina asmática, fazendo inalação e sofrendo com a falta de ar que a maltratava.
Na pracinha de São Cristóvão, me vi observando as mudas das grandes árvores que hoje lá existem sendo plantadas e, enquanto as via crescer, ia ensinando meu filho a dar os primeiros passinhos naquele jardim um dia tão bonito. No cemitério, precisei amparar a mim mesma para não desmaiar de dor no momento em que o corpo de minha mãezinha era enterrado e ainda tive força para ver, vinte anos mais tarde, no mesmo túmulo, ser depositado o corpo de meu irmão e, cinco dias depois, num túmulo mais para cima, repousar o corpo do meu pai.
Ao ser entrevistada pelo Thiago, na redação do Imparcial, reencontrei a repórter, que entrevistou tanta gente, que tantas matérias escreveu ao longo dos anos lúcidos e lúdicos de jornalismo. Dirigindo pela cidade, senti o cansaço do tempo em que percorria essas mesmas longas ruas a pé para trabalhar, estudar ou ir dançar no Turcão, aos sábados.
Foram tantas as Izildas que encontrei, todas tão especiais e, com elas, na última noite da novena, desatei os muitos nós que ainda aprisionavam parte da minha alma, resolvi traumas antigos e experimentei uma libertação que não há palavras para descrever. Então, enquanto me preparava para a grande noite, vi que todas elas se juntaram, se fundiram numa só, na mulher que hoje sou, e pude estar lá, de caneta em punho, sorrindo, chorando, abraçando e autografando, inteira, íntegra, plena, realizada. Pude, enfim, me despedir de parte da minha história. Eu ainda estava em Monte Alto, espalhada por muitos lugares, fragmentada em muitas partes. Juntei-me de novo em uma unidade e, finalmente, inteira, pude partir.