Cheguei da aula de Pilates e sentei-me para tomar café enquanto pensava sobre o meu artigo desta semana. Três dos meus cachorros estavam na cozinha comigo e dei a cada um deles um pedaço de pão integral que fiz ontem à tarde. O maior, Godzila, foi o primeiro a acabar, mas notei que ele deixou vários pedacinhos no chão, uma espécie de bolinhas. Já ia lhe dar uma bronca quando vi que as outras duas, Flor e Brigite, tinham deixado os mesmo resíduos. Olhando mais atentamente vi que, envolvidos nas bolinhas de massa, estavam os grãos de trigo que coloquei no pão. Antes de misturá-los à massa, eu cozinhei os grãos para ficarem macios e, na minha boca, eles se confundiam com o restante da massa, em sabor e textura, mas, não na boca dos cães. Então me pus a pensar sobre esse instinto seletivo que os animais têm.
Quando eu nasci, na casa da minha família já havia cachorros e isso continuou por toda a minha vida, não me imagino sem um cachorro por perto. Pessoas da minha idade se lembram que, até a década de 80 mais ou menos, não era politicamente incorreto dar comida para os cães. Eles comiam as sobras dos pratos dos donos, gostavam muito e não adoeciam por causa disso. Então, fazendo um exercício de memória, convido-os a se lembrarem o que acontecia quando colocávamos arroz e feijão na vasilha dos nossos amiguinhos. Eles devoravam tudo, exceto os grãos de feijão, ou seja, eles sempre selecionam e rejeitam o que não lhes faz bem. Hoje, com o advento da ração, coitadinhos, já não têm como fazer isso e precisam por goela abaixo tudo o que foi posto nela, faça bem ou não e, por mais que a milionária indústria de ração nos garanta a qualidade dos ingredientes utilizados, é algo que nem nós e nem nossos cachorros temos como saber. Eu, se fosse cachorro, sinceramente, preferiria mil vezes o bom e saboroso resto de comida do que a amorfa e insossa ração, pois, além de satisfazer o paladar, poderia continuar separando o que faz bem do que não faz.
Essa seletividade é um recurso da natureza presente não apenas no instinto dos animais, mas também em algumas pistas a eles fornecidas. Plantas ou insetos venenosos, por exemplo, costumam ter cores diferenciadas, geralmente o vermelho, alertando os que deles se alimentam sobre sua toxidade. Mas, e nós, também temos esse instinto? A natureza avisa também a nós do que é bom e do que não é bom, do que serve e do que não serve? Por que temos tanta dificuldade em rejeitar aquilo que é nocivo e vai nos prejudicar?
Permanecendo apenas no âmbito da gastronomia, é fácil nos lembrarmos de comidas – ou bebidas – que, só de olhar, já sabíamos que iriam nos fazer mal, só que, diferentemente dos nossos amigos animais, nem sempre conseguimos evitar, rejeitar aquilo que nos prejudica. As razões pelas quais fazemos isso são inúmeras, a principal delas é o desejo de não desapontar os outros. Há duas coisas que eu não consigo comer nem que me esforce ao máximo: cominho e coentro, só o cheiro desses dois temperos me dão náusea, então, se vou comer na casa de alguém, aviso que não como cominho e coentro. Mas, muitas outras coisas eu engulo, eu aceito, porque a arte de selecionar e rejeitar é muito difícil de ser posta em prática.
Já vi muitas mulheres de meia idade se envolverem com homens absolutamente inadequados, do tipo cafajestão, que não trabalha, já está na casa dos 40, 50 e ainda não se estabeleceu na vida. Todos os sinais indicam que aquilo é uma fria, mas, não demora e lá estão elas com esses trastes aboletados dentro das suas casas, usufruindo de suas camas, suas TVs, seus carros, suas geladeiras, suas contas bancárias. No começo, quando amigos tentam alertá-las, elas rosnam, eriçam o pelo, atacam e se afastam. Depois, quando se veem sozinhas, exploradas e, não raro, maltratadas por esses tipos, vão chorar, se lamentar, fazer terapia e por aí afora. E isso acontece com homens também, que parecem não saber identificar o risco potencial que certo tipo de mulher representa. Muitos desses casos, infelizmente, acabam em violência e podem ter fins trágicos.
Isso acontece conosco no trabalho, quando não sabemos dizer não. Quando surgem escândalos envolvendo casos de corrupção, é comum vermos a bomba estourar e serem presos secretárias, motoristas, caseiros, escriturários. Pessoas que, a princípio, não tinham nada a ver com o peixe e nem tão menos levam parte da “bufunfa”. Funcionários que, com medo de desagradar, de ficar mal diante dos chefes ou patrões, de perder o emprego, mesmo sentindo que aqueles grãos de trigo na massa do pão não lhes farão bem, acabam engolindo-os e, quando a corda arrebenta, são os primeiros – quando não os únicos – a sofrerem as consequências, que podem até culminar em inquéritos e prisões.
Há situações mais simples. Por exemplo, quando alguém resolve nos presentear com algo que não lhes serve ou não lhes agrada – e nem a nós –, mas, incapazes de colocarmos nosso instinto de seletividade para funcionar, acabamos aceitando e ficando com um elefante branco em casa, ou um problema que acabaremos tendo dificuldade para resolver.
Nós, seres humanos, fumamos, bebemos, usamos drogas, nos corrompemos, nos submetemos à promiscuidade sexual, nos empanzinamos, nos deterioramos, nos perdemos, nos matamos, simplesmente por nos afastarmos do básico do básico, do instinto natural que nos mostra o que é bom para nós e o que não é. Diferente dos animais, não recusamos, não recuamos, não exercemos nosso direito de rejeitar o que nos faz mal. Nós flertamos com o perigo, damos passos que não deveríamos dar, entramos em lugares e em roubadas que não deveríamos entrar. Nós somos traidores de nós mesmos. Talvez isso seja pecar. O pecado da Eva não foi ter comido a maçã ou seja lá que fruta fosse, o seu pecado foi comer sabendo que aquilo não deveria ser feito. Isso é flertar com o perigo, isso é trair a nossa natureza.
Mas, assim como os cachorros, nossa situação tem mais um agravante: da mesma forma que a comida hoje oferecida a eles é aquela coisa amorfa, de cheiro e sabor indefinidos, que eles são obrigados a comer sem poder selecionar o que há de tóxico e venenoso ali – e há, tanto que eles adoecem cada vez mais – nós também temos de tragar a nossa dose diária de ração, onde o vermelho da toxidade não se destaca, o cheiro não se reconhece e o sabor se confunde com muitos outros. Como dar ração para os cachorros, além de muito prático, virou regra e muitos veterinários até recomendam que não se lhes dê comida, eles não têm alternativa e nós, será que também não temos?