Na última quarta-feira, enquanto trabalhava na edição de umas fotos, fui surpreendida pelos gritos da minha sogra no portão, pedindo para que eu ligasse a televisão para ver a notícia de uma tragédia: um homem tinha atirado em pessoas dentro da catedral de Campinas, vários mortos e feridos. Não liguei a televisão. O fato já tinha acontecido, a tragédia já estava consumada, de que adiantaria ver os detalhes de algo tão estarrecedor? Mas, esse é o tipo de coisa que entra dentro da gente e abala até as fibras mais íntimas do nosso ser.
A primeira pergunta que grita em nosso interior é: Por que alguém faz uma coisa dessas? E a segunda: Por que Deus permitiu tal coisa? A maldade humana, a crueldade e mesmo a loucura que leva as pessoas a cometerem esse tipo de atrocidade sempre nos choca e é algo que não temos discernimento e sabedoria suficientes para compreender, se é que isso pode ser compreendido. Por ser algo que foge ao perímetro de nosso raciocínio, muitas vezes tentamos arrumar justificativas para crimes ou acidentes que provocam um grande número de mortes. À época do incêndio da Boate Kiss, em 2013, no Rio Grande do Sul, ouvi gente dizendo que as vítimas morreram porque estavam na boate, se tivessem ficado em casa, não teriam morrido, ou seja, culpando os jovens por estarem num local de diversão; também ouvi justificativas reencarnacionistas, atribuindo as 242 mortes a um resgate cármico coletivo.
As cinco pessoas que morreram nessa quarta-feira estavam numa igreja, tinham acabado de assistir a uma missa e, provavelmente, estavam rezando. Ou seja, não estavam no bar, na boate, no baile funk, estavam na casa de Deus! Não demora vai aparecer algum vidente dizendo que eram pessoas que martirizaram cristãos em outras vidas, por isso foram mortas dentro de uma igreja ou materialistas e ateus reafirmando que Deus não existe ou, se existe, não está nem aí para nós. Com essas justificativas, nos sentimos um pouco mais conformados e com menos medo de pertencer à espécie humana, a única capaz de tais barbarismos, pois, se a empatia nos faz sentir que as vítimas estão dentro de nós, não podemos ignorar que o algoz também está. Definitivamente, não nos conhecemos e não temos noção do que somos capazes de fazer.
Tudo o que supomos saber em relação a Deus são teorias, são hipóteses, mas, se me fosse dada a capacidade de definir o sentimento de Deus diante dessa chacina eu diria que ele está profundamente triste. Triste pelas vítimas, colhidas talvez no meio de um Pai Nosso ou uma Ave Maria, numa prece em que pediam ajuda e proteção para si mesmas ou para alguém que amavam ou numa ação de graças. Triste pelo rapaz que comprou as armas e a munição e premeditou o atentado, pois esse não é o tipo de crime que se pratica por impulso, é algo pensado, calculado, planejado minuciosamente. Triste pelas famílias dos que foram mortos, triste pela família do que matou. Triste por ver o sangue inocente manchando a sacralidade do templo construído para louvá-lo, adorá-lo e glorificá-lo. Triste por todos aqueles que sofrerão um esfriamento da fé depois de tão nefasto episódio, triste por todos que o acusarão de ter permitido que a tragédia acontecesse. E a tristeza de Deus deve ser uma tristeza que não tem tamanho e cada dia ele tem tido mais razões para senti-la…
Tomei um pouco d’água e voltei para o meu trabalho com as fotografias e, enquanto tentava acalmar a minha própria dor humana, lembrei-me da afirmação do existencialista Jean-Paul Sartre de que o homem está condenado a ser livre. O existencialismo é uma corrente filosófica que tem como tripé a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano. Sim, estamos condenados a sermos livres e a arcarmos com o peso que isso significa. Pode ser bem mais fácil acreditarmos que tudo está traçado, que temos um destino marcado e que vai acontecer tal ou tal coisa nas nossas vidas, porém, a vida se constrói minuto a minuto através de nossas ações e interações. A vida é feita de nossa subjetividade que, materializada, pode resultar na morte de pessoas cujo último lugar em que imaginariam ser atingidas por tiros de uma arma potente era dentro de uma silenciosa e bela catedral.
É muito difícil sabermos o que Deus é, e uma das maneiras mais prováveis de conseguirmos chegar próximos disso é tentarmos refletir eliminando aquilo que ele não é. Enquanto colocava animação nas imagens, fui comparando Deus com aquela realidade virtual que movia na tela as fotos da apresentação, dobrando-as, fazendo com que caíssem para trás ou se desvanecessem como uma folha levada pelo vento. Efeitos que, na realidade objetiva, não existem, mas que, ao clique de um botão, passam a existir. Esta é a minha definição de Deus: algo sutil, subjetivo, que não podemos tocar, mas que, uma vez acessado, modifica tudo. Um Deus que nos condenou à liberdade e às consequências dela e que aqui esteve, humanamente, apenas para nos falar que a ÚNICA maneira possível de acessá-lo é nos conectando ao próximo e já se vão mais de dois mil anos e continuamos nos matando, traindo, usurpando e enganando uns aos outros. Ninguém neste mundo fala em projetos para destruição das armas e o fim de sua fabricação, ao contrário, cada dia elas são mais potentes, mais letais e mais sofisticadas. Elegemos um presidente que nos acena com a esperança e, ao mesmo tempo, com a liberação da posse e do porte “responsável” de armas e achamos que isso se chama segurança. Sim, somos livres. Estamos condenados a isto. Infelizmente.