“São bem conhecidas as obras da carne: fornicação, libertinagem, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, facções, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas.” (Gálatas 5, 19-21)
Estamos vivendo um fenômeno político sem precedentes. A Internet deu voz a quem só tinha ouvidos e aqueles que falavam, que ditavam as regras e apresentavam as suas propostas, em busca de votos, precisaram aprender a conviver com essa nova realidade. Nem todos os candidatos deram a devida a importância a esse fenômeno, mas, quem soube aproveitá-lo, se deu bem. Em todos os períodos eleitorais ouvimos a mesma história de que o povo não sabe votar, que culmina no velho jargão de que cada povo tem o governo que merece. A verdade, porém, não é bem essa. As pessoas não tinham como conhecer seus candidatos mais a fundo e não podiam opinar. Assim, cada região elegia aquilo que era ali conhecido e a história vinha se repetindo há décadas, com pequenas variações. O grande diferencial, nestas eleições, é que as pessoas estão se comunicando de ponta a ponta do país e tudo parece ter ficado mais diluído, mais transparente. Esse é o lado bom, a ampla liberdade de expressão que revela a democracia em todo o seu teor. Porém…
Porém, existe também o lado mau e vou contar uma historinha para ilustrar isso, embora exemplos existam em pencas no cotidiano de todo mundo. Eu tenho uma grande amiga, com a qual já vivi momentos importantes, já pude ajudá-la e ser ajudada por ela em questões cruciais. Tudo o que vivemos juntas nos fez ter uma significação muito grande uma para a outra. Estou com uma viagem marcada para São Paulo, onde ela mora, e tínhamos combinado de nos encontrarmos para tomar um café, talvez eu até me hospedasse na casa dela. Essa amiga, sabendo de minha formação em Letras e de meu amor pela literatura, me apresentou virtualmente uma amiga sua, que é poetisa e esta trocou vários e-mails comigo, me enviando uma grande quantidade de seus poemas para uma avaliação. Em quase todos os e-mails que me mandava ela perguntava sobre a data da minha viagem e dizia que não via a hora de me encontrar, pois, mesmo sem me conhecer pessoalmente, me achava uma pessoa maravilhosa e já me considerava sua amiga.
Há duas semanas eu escrevi um texto para a minha coluna fazendo uma análise das conjunturas políticas da véspera das eleições e apresentei a opinião de que quem daria a vitória ao candidato que aparecia melhor nas pesquisas não seriam os seus simpatizantes, mas os votos silenciosos, as pessoas que não desejam se comprometer revelando suas escolhas ou tomando partido de um ou outro lado. Como mencionei nomes de candidatos, em conversa com a direção do jornal, entendemos ser melhor não publicar o artigo a fim de evitar problemas com a Justiça Eleitoral. Então, acabei publicando o texto na minha página do Facebook. Muitas pessoas o interpretaram como apoio a um candidato e expressaram a sua posição, com observações muito interessantes. As que votariam neste candidato aprovaram o texto e até o com partilharam. Alguns, que não votariam nele, compreenderam o texto, mas defenderam seus pontos de vista, tudo muito civilizadamente.
Alguns, porém, partiram para o ofensiva e a coisa chegou a tal ponto que, após ler um comentário de uma ex-colega de trabalho e de faculdade no qual ela manifestava sua “decepção total por ver uma pessoa tão inteligente” fazer tal declaração (deixando claro que só as pessoas estúpidas é que votariam no candidato que ela desaprova) eu tive que me manifestar novamente, respondendo ao seu comentário com um longo texto em que fui mais contundente em minha posição. Parei por aí. No entanto, acabei sendo alvo de uma hostilidade gratuita que me fez pensar sobre o que é tolerância e respeito à diversidade, afinal, pois, para mim, respeito à diversidade não se expressa só em relação às minorias, mas também – e simplesmente – no respeito a quem pensa diferente de nós. Dessa forma, vi a intolerância em quem tem como bandeira pregar a tolerância, uma incongruência. Uma das pessoas que pegou mais pesado foi essa querida amiga que mencionei. E, como se não bastasse o ataque à minha posição, ela acabou se digladiando com outra pessoa na minha página e ficou um toma lá dá cá bem agressivo e que parecia não ter fim. Senti como se amigos se pegassem a tapas na minha sala de visitas, em total desrespeito à minha casa, onde a soberania, obviamente, deveria ser minha.
Essa amiga passou a procurar outros textos meus e a postar coisas neles também e, num dado momento, a sua amiga poetisa, até então minha virtual admiradora, postou a seguinte pérola: “Informação por favor. História não é estória. A ignorância deste texto é patética. Não merece comentário. Merece formação e informação. Em luto pela ignorância mascarada de texto político ridículo.” Bem, ela nem me conheceu pessoalmente, mas, desconfio que não me admire mais… E é essa a grande questão, o grande nó dessa situação tão atípica que estamos vivendo. A política tem essa qualidade de colocar as pessoas em lados opostos (mesmo que depois os candidatos acabem passando para o mesmo lado e, de adversários, se tornem aliados). Só que, desta vez, as pessoas estão levando isso a sério demais. Amigos estão brigando, famílias estão se dividindo. Eu mesma precisei bloquear uma pessoa da família, muito próxima e muito querida, pela enxurrada de postagens bobas e ofensivas que eram enviadas pelo WhatsApp várias vezes por dia, mas a gente não pode bloquear as pessoas na vida real.
Eu me pergunto: será que a culpa é da política? As pessoas estão mostrando a sua capacidade de escolher e o seu direito de opinar como nunca foi feito, o que é maravilhoso, mas também estão despencando pela ladeira da baixaria com muita facilidade. No mundo virtual isso já virou uma pandemia e o triste é que isso está vindo para a vida real, fazendo com que pessoas que se gostam, briguem, se dividam e, infelizmente, uns mais esquentados têm partido para as vias de fatos e mortes estão se somando a esse “excesso” de democracia, uma liberdade legítima, mas que, infelizmente, já cruzou a linha do bom senso há tempos. Parece que nossos piores lados estão vindo à tona e eu pergunto novamente: a culpa é da política? Ou será essa uma grande e segura oportunidade para expressarmos os nossos ódios, os nossos recalques, as nossas insatisfações, as nossas neuroses latentes?
Gente, ganhe A ou ganhe B, não haverá salvador de uma pátria tão machucada por séculos de desmandos e corrupção, por uma história que vem torta desde a época do império! Acho maravilhoso esse desejo de mudar e esse renascer da esperança que parece encher o coração das pessoas, no entanto, já vivemos isso com Tancredo, com Collor, com Lula; nossos pais viveram isso com Getúlio, com Jânio Quadros, com Juscelino Kubitschek. Lá atrás, nossos ancestrais, com o grito de Dom Pedro às margens plácidas do Ipiranga. Porém, passadas as eleições, é uns com os outros que vamos ter de lidar, de conviver e são as nossas mais preciosas relações que estamos pondo em risco com tanto extremismo. O candidato vencedor poderá fazer um bom governo, mas, por melhor que ele faça, foge da sua alçada consertar os relacionamentos arranhados, feridos e até destruídos por conta de divergências políticas.
Fiquei pensando sobre como agir na minha viagem, ligar ou não ligar para a minha amiga tão indignada com a minha posição divergente da dela, afinal, saudade e afeto não têm cor partidária, mas, infelizmente, um fato lamentável se interpôs diante da minha indecisão sobre vê-la ou não em São Paulo amanhã: após passar várias dias e noites na Internet, sem se alimentar, apenas fumando e bebendo café, seu corpo não aguentou, ela teve um AVC no domingo passado e está na UTI. Quando soube, liguei para a casa dela e a mãe, de oitenta e poucos anos me disse: “Foi a política Isa, foi essa maldita política!”. O mais importante neste momento crucial da nossa história é que as obras da carne, mencionadas pelo Apóstolo, não nos vençam e que possamos sair inteiros e de posse da nossa dignidade depois que tudo isso acabar.