“Choram as rosas, seu perfume agora se transforma em lágrimas. E eu me sinto tão perdido(…) Choram as rosas porque não quero estar aqui sem seu perfume. Falta seu cheiro que eu sentia quando você me abraçava. Sem teu corpo, sem teu beijo, tudo é sem graça.”.
Na edição de 17 de agosto o Imparcial trouxe a notícia de mais um caso de suicídio registrado em Monte Alto, destacando tratar-se do terceiro caso este ano. A vítima era uma mulher de 67 anos, Dona Maria das Graças, que, por alguma desconhecida razão, deixou de encontrar graça no fato de estar viva.
Da mesma forma que me impactam as notícias de homicídio, também me impactam as de suicídio e, como já escrevi aqui, lamento profundamente que tenhamos esse terrível poder de matar ao outro e de nos matar. Quem fica não consegue entender e nem imaginar a dor que leva alguém a ato tão extremo, mas, quem parte também não consegue imaginar a proporção da dor e do sentimento de fracasso que deixa em quem fica.
A frase com que abri o artigo é um trecho da música “Choram as rosas”, de Bruno e Marrone. Não sei porque, mas, desde a primeira vez que ouvi essa música ela me remeteu à imagem de alguém chorando por ter perdido uma pessoa querida para o suicídio.
Há três anos e meio pessoas que eu amo foram abaladas pela partida de um lindo e inteligente jovem de 19 anos. Uma partida que causou uma cratera emocional, uma dor que não passa e que se insinua em coisas pequeninas do dia a dia, uma saudade sem nome e sem dimensão. O que é mais triste é que todos os dias mais Marias e mais Guilhermes perdem a graça, o encanto e a razão de estarem aqui e optam por sair de cena, retirando-se da vida. E isso dói de uma forma dilacerante para quem vai e para quem fica.
No dia 5 de abril de 1979, quando eu tinha 14 anos, eu também entrei por essa porta, também fiz a minha despedida da vida que tentei liquidar com dois copos de um potente veneno chamado Audrin 40. Porém, eu fui socorrida a tempo e, embora os médicos que me atenderam em Ribeirão Preto, para onde fui transferida, tenham preparado a minha família para o pior, dizendo que minhas chances de sobrevivência eram de 5%, alguma coisa venceu os 95% e me impediu de partir.
Lembro-me que quando voltei do coma, alguns dias depois, entubada e ligada a aparelhos, a minha mãe estava ao meu lado, ainda com seu uniforme de merendeira da cozinha piloto e a primeira coisa que ela me disse foi: “Por que você fez isso pra mim?”. Da mesma forma que muitas especulações são feitas e Fake News espalhadas pelas redes sociais a respeito dos mais variados assuntos, com as afirmações mais estapafúrdias possíveis, embora não houvesse esse recurso naquela época, a língua humana sempre existiu e muitas coisas ruins também foram ditas a meu respeito. Uma delas é que eu estava grávida. Apesar da minha virgindade atestada por exames médicos para tranquilizar a minha família e dirimir qualquer culpa que pudesse pesar sobre o meu namoradinho, quando eu deixei o hospital, muitos dias depois, teve gente com coragem suficiente para ir à minha casa e me perguntar se eu tinha perdido o bebê!
Enfim, eu não morri, fiquei conhecida como a “Izilda que bebeu veneno”, uma definição bem específica que me distinguia numa terra tão repleta de Izildas, embora me entristecesse. Hoje isso seria bulling, na época era apenas um ácido efeito colateral com o qual tive de aprender a conviver e ignorar. Infelizmente, ninguém me perguntou por que eu fizera aquilo para mim mesma. Uma resposta que certamente eu não teria, mas, confesso, gostaria de ter ouvido a pergunta, porque isso denotaria a preocupação das pessoas com esse assunto tão triste, por muito tempo um tabu sobre o qual se evitava falar e hoje, infelizmente, uma realidade crescente, atingindo tanto pessoas mais idosas, como a Dona Maria das Graças, quanto jovens e crianças cada vez mais novas.
Ninguém sabe por que as pessoas se suicidam. O que eu posso dizer sobre isso, com base na minha própria experiência, é que há uma dor que não tem nome, que não é possível descrever, sobre a qual não se consegue falar e quem se mata quer apenas fazer parar essa dor, esse abismo na alma. No ano que vem se completarão 40 anos de minha infeliz tentativa. O desejo de morrer não me venceu, mas, não me abandonou e, durante essas quatro décadas, em muitos momentos tive de lutar contra ele com todas as minhas forças. E sair vencedora dessa luta me faz ver a vida com um especial encantamento, como algo novo e infinitamente belo todos os dias, mesmo quando estou dentro do caos ou com o caos dentro de mim.
As pessoas que ficam não deveriam se culpar, mas, se culpam e, com variantes, é comum que culpem também quem lhes provocou tamanha dor. É sempre bom lembrar, como eu gostaria de ter respondido para a minha mãe se não tivesse com um tubo na boca que me impedia de falar: “Eu não fiz isso para a senhora, eu fiz para mim”. Infelizmente, é difícil ou talvez até impossível para quem se mata entender que seu gesto vai causar no outro uma dor tão grande quanto a que ele mesmo sentia. É um ato insano, e num ato insano não cabe a razão.
É importante frisar que o homicídio nem sempre é premeditado e muitas vezes uma pessoa tira a vida da outra num impulso de cólera, no calor de um momento. Não acontece o mesmo com o suicídio. Ninguém se mata por impulso. O suicídio é pensado, planejado, articulado minuciosamente para não haver falhas. É muito difícil, talvez até mesmo impossível, atingir a alma e o coração de outra pessoa, conhecer suas intenções e seus pensamentos, mas, se você tem na sua casa, nas suas relações uma pessoa triste demais, arredia, isolada, essa pessoa pode estar gritando em silêncio, tente ouvir esse grito para que não tenham de chorar as rosas… E, se você traz essa dor e esse desejo mórbido dentro de você, procure ajuda, peça socorro, pense nas rosas e, por favor, não apresse a sua partida. Sobreviva, porque, sem seu corpo, sem seu cheiro, sem seus beijos, para quem fica, tudo se tornará dolorido e sem graça.