Ou isto ou aquilo

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Em muitas circunstâncias eu repeti os dois primeiros versos do poema “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meirelles, palavras que se tornaram uma espécie de lema para mim, logo que as li, no fim de minha meninice: “Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!”. Palavras mais tarde completadas pela dura expressão de Jean Paul Sartre: “o homem está condenado a ser livre”.
Cecília lamenta: “É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!” Sim, é uma pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois (ou mais) lugares. Nossa vida é feita de escolhas, e Sartre conclui o seu pensamento dizendo que, depois de atirado neste mundo, o homem torna-se responsável por tudo que faz.
Há muito tempo, um tempo tão longo e dolorido que achei que nunca fosse acabar, minha alma adoeceu e, por pouco, não “dei linha na pipa”, como dizem os mais jovens. Foi uma depressão severa, que me tirou de circulação, me afastou do trabalho, dos amigos, da família, das coisas que gostava de fazer. Incapaz de gerir meus bens com sabedoria (o que parece ser o mal de todo artista), acabei falindo e perdendo todas aquelas coisas às quais costumamos dar importância: casa, carro, cargo, dinheiro. Porém, quando parecia que a vida nunca mais teria sentido, um milagre se deu…
Conheci Atibaia e comprei, em suaves prestações, um terreno entre suas belíssimas montanhas, um lugar onde o crepúsculo tem um encanto indescritível e, de manhã, o sol nasce de por detrás das montanhas, sorrindo, como aquele desenho que todas as crianças fazem em seus cadernos. Atibaia foi a minha ressurreição. Planejei a casa dos sonhos e, a cada parede que subia “tijolo por tijolo, num desenho mágico”, eu ia reconstruindo a minha vida e, frise-se, muitos desses tijolos foram colocados pelas minhas próprias mãos, assim como assentei parte do piso, rejuntei os azulejos dos banheiros, construí escada, pintei paredes. Coloquei as mãos na massa, literalmente, e a depressão, coitada, não teve alternativa senão colocar o rabinho entre pernas e partir.
Onze anos se passaram desde então. A construção durou uma década inteira, e ainda ficaram algumas coisas por fazer. Muitos acontecimentos especiais nesse tempo, e muitas escolhas, “ou se calça a luva, ou se põe o anel”… Entre elas, escolhi por fim a um casamento seguro, porém amorfo, morno, moribundando cada dia mais… Não é fácil terminar uma relação de longa data, sobretudo quando não há motivos aparentes para isso, apenas se acalenta na alma o desejo de conhecer e viver um amor de verdade. Apesar de difícil, foi uma decisão sábia, pois o tempo me trouxe o anelado e sonhado amor, mas, ah!, até que ele chegasse, só eu sei os tormentos aos quais a solidão me conduziu, a ponto de a desenxabida depressão até tentar voltar.
Uma casa, ainda que pareça uma casa encantada, não se constrói só de sonhos e de poesia, e tijolo, cimento, telha, ferragem, piso, azulejo, eletricista, encanador, pedreiro, têm preço – e é caro! Como falei, estava saindo de uma falência e, para dar corpo à minha casa dos sonhos, fui recorrendo à agiotagem oficial, caindo na armadilha diabólica de emprestar dum banco para pagar outro e, de consignação em consignação, minha dívida ficou impagável e virei sócia remida do SPC e do SERASA. Quando meu grande amor me encontrou, adorou minha casa, mas acabou me levando de lá e a chácara tornou-se nosso refúgio, porém um refúgio caro de manter. Fomos obrigados a ir rareando as visitas e, em cada uma delas, uma decepção: o mato que se alastrava, cobrindo horta, pomar e jardins, marimbondos e outros bichos se mudando pra lá, poeira e teias de aranha recobrindo o chão e as paredes…
Parecia impossível, mas, só havia uma solução: vender. Tomei a difícil decisão e comecei a me preparar para a terrível maratona de anunciar, lidar com corretores e potenciais compradores, negociar condições e valores. Assim que decidi pela venda, um amigo poeta quis ir ver a casa. Apaixonou-se! Viu no sábado e decidiu comprar no domingo. Assim, num piscar de olhos. Em uma semana foi feito o contrato e depositado o dinheiro, só falta o cartório concluir a escritura. Suspirei e a casa já não era minha…
Concomitante a isso, tive também mudanças no trabalho, sendo tirada de minha zona de conforto, de um lugar que parecia a casa da mãe Joana quando cheguei e uma casinha de boneca quando saí, um serviço que me custou suor e lágrimas para aprender e organizar o que estava caótico. Vendi a casa no domingo passado e mudei de local de trabalho na sexta. Exerço uma atividade que exige muita atenção e dedicação, consome tempo e energia e, para continuar executando bem os meus afazeres, nem me dei tempo para sofrer a perda do meu doce lar. E, nesses últimos dias, estou me ocupando em esvaziar a conta bancária pagando as dívidas contraídas. Conquanto as circunstâncias hoje sejam bem diferentes do período de minha “noite escura”, mais uma vez, ficarei sem casa e sem dinheiro e, enquanto as pessoas me cumprimentam pelo excelente negócio que fiz, pela sorte que tive em vender tão rápido, para o primeiro interessado, dentro de mim vou sentindo desmoronar “tijolo por tijolo dum desenho lógico, com os olhos embotados de cimento e lágrimas”. Ao meu redor, pessoas que não conheço, um volume de serviço do qual nem sei se dou conta e, dentro, lágrimas que não posso chorar, gritos que não posso dar, uma ruptura que mal consigo suportar…
Com a mesa cheia de pendências e papéis, senhas que não funcionam, sistemas que não consigo acessar, coisas que não sei resolver, senti muita vontade de que a minha mãe ainda estivesse aqui e que eu pudesse deixar tudo, no meio do expediente, ir para casa e encontrá-la me esperando com saboroso bolo e uma chaleira de chá fumegante ou um caldeirão de sopa bem encorpada sobre o fogão; mas eu estava só e nem podia me dar ao luxo de chorar, pois perto de mim não tinha sequer um amigo, apenas pessoas que conheci há poucos dias e das quais nem sei os nomes. Então liguei para o meu chefe e, dando uma justificativa, mais para mim mesma do que para ele, pedi para voltar, para ser transferida o mais rápido possível para Mogi Guaçu, a cidade que agora é meu lar, porque preciso estar cercada de coisas conhecidas e de pessoas queridas. Minha alma sangra e não posso continuar viajando todo dia, saindo de casa às seis da manhã e retornando quase dez da noite. Estou de luto, preciso de cuidados. Há muitos anos minha mãe não está aqui, então preciso ser minha própria mãe, cuidar de mim como se cuida de um filho, preparar eu mesma as sopas suculentas, os chás fumegantes e os escalda-pés. Preciso dar-me de presente as férias das quais, pelo trabalho, só tirei dez dias. Essa despedida da casa, tão carinhosamente idealizada e construída, é um treino para o dia que, em definitivo, deixarei este Lar. Preciso estar preparada, preciso viver essa dor. Tirei a luva, preciso me acostumar com a beleza do anel…

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