Desde a fatídica sexta-feira, 25 de janeiro, quase não se fala de outra coisa além da tragédia de Brumadinho/MG. Tudo o mais ficou em segundo plano: a crise na Venezuela, a cirurgia do presidente Jair Bolsonaro e os enroscos do seu filho depois das revelações do COAF, as eleições na Câmara e no Senado, o último capítulo da novela da Globo. Tudo sumiu na lama devastadora da mina do Córrego do Feijão. Mesmo os nossos ilustres senadores tendo se esmerado na baixaria nas duas primeiras reuniões para escolher o presidente da casa, ainda assim, foram eclipsados pela catástrofe que ceifou centenas de vidas. São tantas informações, tanta dor, tanto trabalho e dificuldade na remoção dos corpos, tanta indignação diante da impunidade após o desastre de Mariana, três anos atrás, que a gente nem sabe o que absorver, mas, é difícil ficar imune e não pensar em algum aspecto desse trágico acontecimento.
Nesse cenário de devastação total, um detalhe que me chamou a atenção foram os momentos de oração, incluindo uma missa em que as pessoas não cabiam dentro da igreja. É de comover o tamanho da fé daquele povo diante dessa tragédia. Obviamente, também deve haver os revoltados, aqueles que perguntam por que Deus deixou isso acontecer. Assisti a vídeos de empregados da Vale que conseguiram sobreviver ao desastre e afirmam que Deus os salvou. Mas, que Deus é esse que salva meia dúzia e permite que centenas morram de maneira tão terrível? Não, certamente Deus não salvou esses homens que, embora se sintam agraciados, não têm nada de especial, nada que os outros não tivessem, não são filhos diletos e escolhidos, porque Deus, por mais que amasse de forma especial uma ou outra pessoa, não seria capaz de tamanha injustiça, porque Ele representa a harmonia e o equilíbrio, onde não cabem privilégios.
Acredito em Deus plenamente, mas acredito também que Deus não tem absolutamente nada a ver com essa situação. A responsabilidade é dos homens, é fruto da ganância, da inobservância das leis, ou melhor, da sua burla diante da compra de parlamentares que são capazes de vender as suas almas votando medidas que favoreçam os interesses de grandes empresas como a Vale ou fazendo conluios para que sejam arquivados projetos que poderiam prevenir as catástrofes, mas causariam prejuízos aos bolsos dos seus “donos”.
Eu já vivi mais de meio século e, por mais que tenha cultivado a fé, estudado, perscrutado as religiões, mesmo tendo presenciado milagres e também ausências e silêncios de Deus, posso dizer que creio, porém, que não entendo absolutamente nada sobre seus desígnios de Deus, sobre a sua atuação no mundo dos homens. Muita gente se arvora em completo conhecedor e entendedor de Deus e vive por aí criando regras e normas, fundando religiões, escrevendo livros, fazendo homilias, palestras e pregações sobre o que Deus pensa, o que Deus faz, como Deus é. Quimeras. Na verdade, ninguém sabe. O papa não sabe, o rabino não sabe, o líder muçulmano não sabe. Especulamos sobre o que achamos, no entanto, não sabemos.
Apenas sabemos que estamos à mercê de uma série de fatores desconhecidos, de forças capazes de nos nocautear, como os tsunamis, vulcões, tufões, raios e tempestades que, sem a ação humana, ceifam muitas vidas de forma desesperadora. Estamos também à mercê de homens que são regidos pelo lucro e pelo interesse e que, por suas ações, põem em risco a natureza e a vida humana, seja construindo e mantendo barragens que ameaçam coletividades ou explodindo prédios e colocando fogo em ônibus, como temos visto acontecer no Ceará; homens que destroem pessoas, famílias, bairros, cidades com o nefasto tráfico de drogas e tudo o que advém dessa prática; homens que têm a política como meio de projeção e enriquecimento, expondo as populações à humilhação e à miséria.
Certa vez, eu prestei um concurso público. Eu precisava muito daquele emprego, poderia dizer que minha vida, meu equilíbrio e o meu futuro dependiam daquilo. Era uma ótima empresa, com bom salário e vários benefícios. As vagas eram poucas, apenas 150. Os candidatos, porém, eram muitos, quase 150 mil, ou seja, mil pessoas por vaga, algo quase inacessível. No dia da prova, eu vi pessoas rezando, então pensei, se soubesse que, por algum motivo, Deus pudesse me fazer passar naquele concurso, eu teria passado todos os dias, desde o momento da inscrição – que fiz com dinheiro emprestado – ajoelhada rezando. Em vez disso, eu estudei até a exaustão física e mental. Vendo as pessoas rezarem, eu apenas desejei que Deus aclarasse a minha memória e me ajudasse a lembrar de tudo o que tinha estudado. Minha classificação no concurso (cujo jornal com o resultado guardo até hoje, quase 30 anos depois) foi 27º lugar. Mas, não foi Deus quem me deu essa classificação. Ele não seria justo com os milhares de pessoas que pleiteavam uma vaga se privilegiasse apenas alguns candidatos. Da mesma forma, dizer que Deus salvou uma ou outra pessoa que escapou da lama de Brumadinho é afirmar que ele foi injusto com todas as outras cujos corpos ainda estão lá, soterrados, apodrecendo, alguns despedaçados. Injusto com essas pessoas e com as suas famílias.
Eu não sei exatamente o que Deus faz, mas não acho difícil saber o que Ele não faz e privilegiar quem quer que seja é uma dessas coisas. O que vem Dele é o alento, a coragem, a esperança, as condições de sobreviver mesmo depois das perdas mais horríveis e dilaceradoras. A força de Deus se manifesta na sutileza que nos sustenta e nos mantém. Como dizer para uma criança que perdeu seu pai ou sua mãe ou para um pai e uma mãe que perderam filhos, uma esposa que perdeu o marido que Deus escolheu salvar fulano ou beltrano, mas não escolheu o seu ente querido? Que fé sobreviveria a isso? A fé é dar-se as mãos no meio da lama do desalento e dizer uns aos outros: “Está doendo, está quase impossível suportar, mas, nós estamos aqui, nós partilhamos a mesma dor, Deus vai nos ajudar a superar.”.