A procrastinação sempre foi um assunto que me interessou e, ultimamente, tenho estudado mais sobre esse tema e conversado com outras pessoas que também se interessam por ele. Todos os habitantes do planeta têm as mesmas 24 horas a cada dia, por que alguns conseguem fazer um monte de coisas e outros parecem não conseguir sair do lugar? O que é, afinal, a procrastinação, além de uma palavra difícil de pronunciar?
Segundo o dicionário, procrastinação é o “ato de procrastinar, transferir para outro dia ou deixar para depois, adiar, delongar, postergar”. Dando uma ajudinha para o Aurélio: enrolar, ensebar, empurrar com a barriga. Muita gente confunde procrastinação com preguiça ou vagabundagem, não é. Uma pessoa pode ser procrastinadora e não ser preguiçosa. Pode até ser mais ativa do que muita gente, o problema é que às vezes se parece com um cachorro que fica correndo atrás do rabo, se cansa e não consegue sair do lugar.
O procrastinador não é uma pessoa que deixa de fazer as coisas por má vontade, um desocupado, um folgado. Longe disso. Pode ser um enrolado, isso sim, mas não é alguém que não está nem aí para nada.
Tem gente preguiçosa? Tem. Tem gente vagabunda? Tem. E qualquer ser humano normal pode sentir preguiça de vez em quando, pode não querer fazer alguma coisa, dar uma bica no trabalho, esquecer da vida. Isso é bastante diferente de procrastinar, de não saber o que fazer com o tempo, de se propor mais tarefas do que daria conta e acabar não concluindo nenhuma, se sentindo perdido e incapaz.
Muitos têm esse problema, sofrem com isso, mas, como têm uma rotina rígida para seguir, horário para entrar no trabalho, para fazer o intervalo de almoço, para cumprir determinadas tarefas ou, quem estuda, horário das aulas, lições e trabalhos escolares com prazo para entregar, mesmo com dificuldade, fazem o que precisa ser feito simplesmente porque precisa ser feito e não podem fugir disso, a menos que queiram perder o emprego ou repetir de ano. É como uma doença silenciosa, um diabetes, uma pressão alta, uma cefaleia. A pessoa sente um incômodo, toma um remedinho e toca a vida, só vai se dar conta da gravidade quando tiver um AVC, uma parada cardíaca ou uma crise glicêmica severa.
Com o procrastinador, acontece exatamente isso. Fica meio perdido, parece ter mais dificuldade que outras pessoas para executar tarefas semelhantes, sofre ao se comparar com pessoas mais rápidas e mais organizadas, mas, vai levando, vai fazendo do jeito que dá, vai sobrevivendo. Porém, como o sal a mais que eleva a pressão além da medida, o açúcar a mais que precipita as consequências da diabetes ou a artéria que entope pelo excesso de triglicerídeos no sangue e precipita um infarto, de repente, ele tem a precipitação de uma crise pelo tempo a mais.
Nós sabemos que tem muita gente morrendo de Covid, mas sabemos também que tem um grande número de pessoas sofrendo com os efeitos colaterais da alteração na rotina da vida. Antes, saía-se de casa para trabalhar, hoje, trabalha-se em casa. Antes, ia-se à escola para estudar, hoje, estuda-se em casa. Aí vira um furdunço só! Não se precisa mais levantar correndo, engolir o café em pé e se apressar para tomar a condução ou sair mais cedo, de carro, para evitar o atraso. Então, se você não tem essa pressão matinal, como é que vai ter uma motivação externa para começar o seu dia e cuidar das suas tarefas?
Antes, existia um protocolo, você se arrumava para ir trabalhar, colocava a camisa social, a gravata, ou mesmo que seu trabalho não exigisse essa formalidade, você não ia para o serviço de qualquer jeito. Para as mulheres, mais detalhado ainda, porque, além do trio roupa/sapato/bolsa combinando, tinha os acessórios, a maquiagem, o perfume. E agora? Mesmo que você tenha reuniões pela internet ao longo do seu dia, se não precisar ligar a câmera, você pode ficar de qualquer jeito e, mesmo que tiver de mostrar a sua cara na telinha, da cintura para baixo pode estar vestindo aquela confortável cuecona de seda, uma bermuda velha e, nos pés, o maravilhoso, macio, confortável e abençoado chinelo de dedo!
Trabalhando ou estudando em casa, tirando os momentos de encontros virtuais, você pode fazer o seu horário e desempenhar as suas tarefas sem a pressão do relógio de ponto, da presença do chefe, da chamada feita pelos professores. No entanto, estar solto dentro desse tempo sem delimitações, corresponde exatamente àquele salzinho a mais, àquele docinho a mais, àquela gordurinha a mais que desencadeiam as doenças que podem levar você desta para a outra (se melhor ou pior, só Deus sabe!).
Às vezes ouvimos dizer que o tempo é um tirano, mas, não, ele é apenas o tempo. A tirania está no que consigo fazer dentro dele ou no que não consigo fazer antes que ele escoe, inclemente, passado o seu prazo de validade diário. Com certeza, não está sendo fácil para ninguém. Claro, tem gente que continua saindo de casa para trabalhar, o que também pode gerar um conflito dos bons com os que moram na mesma casa e estão em home-office. São realidades diferentes, timings diferentes, pessoas diferentes.
O lado positivo disso é que hoje, devido a uma catástrofe, finalmente, podemos ser senhores do tempo e, conquanto isso seja uma coisa muito desejada (trabalhar sem horários rígidos, sem marcar ponto, sem chefes controlando tempo/produtividade, sem lista de chamada) tem muita gente torcendo para tudo voltar ao normal o quanto antes, para poderem voltar a receber as regras vindas de fora, pela total, plena e amedrontadora incapacidade de gerir isso de dentro para fora. Afinal, ter um dia ensolarado, um monte de relatórios chatíssimos para concluir, tarefa escolar para fazer, uma Netflix à mão, um celular dando mole e ninguém para ditar as regras pode ser uma beira de abismo sem precedentes.
A melhor coisa que temos a fazer, ao nos reconhecermos procrastinadores (além de aprender a pronunciar esse trava-línguas sem enroscar), é cantar com Caetano Veloso: “Peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso, tempo, tempo, tempo, tempo, quando o tempo for propício (…) de modo que o meu espírito ganhe um brilho definido, tempo, tempo, tempo, tempo e eu espalhe benefícios”, tirando de você, velho tempo, o que você tem de melhor e lhe dando o que eu tenho de melhor, em você e apesar de você.