Ontem pela manhã, conversei com um amigo sobre questões filosóficas e religiosas, uma conversa dura, de argumentos fortes. Uma conversa que, como os círculos concêntricos formados por uma pedra atirada na água, afetou várias camadas de minhas emoções e, ao voltar para casa à noite, trouxe a alma perturbada, o que não me permitiu encontrar o mesmo prazer de todos os dias nas coisas simples como o beijo do meu amado, a festa dos meus cachorros ou o simples aconchego reconfortante do meu lar.
Acordei algumas vezes à noite e cedo o bastante para despertar a aurora e esse tempo de não dormir me fez refletir e até mudar o tom do que eu tencionava escrever no artigo desta semana. E a questão a que me levou essa reflexão, que não é algo novo, fruto de uma noite mal dormida, mas antigo e profundo, algo que me acompanha ao longo da vida foi: até que ponto nos deixamos influenciar pelos sistemas e filosofias criados por outrens? Até que ponto o que não é meu, o que não é da minha natureza, logo, o que não é sagrado e divino, tem poder sobre mim, sobre cada um de nós?
Algumas vertentes religiosas criticam muito a suposta idolatria do catolicismo, acusando os católicos de contrariarem a Bíblia adorando imagens, no entanto, as imagens de santos ou mesmo os imaginários retratos de Jesus não passam de uma forma carinhosa de contato com o impalpável, é como se tivéssemos saudades de um céu que nos é dado como esperança e de onde talvez tenhamos vindo, é como as fotos dos avós, dos pais, dos filhos, dos amigos que já não estão perto de nós. Ninguém ama as fotos, amam-se as lembranças, as memórias que elas representam, da mesma forma, não se adora ou se ama as imagens, mas a ventura e o afeto que elas representam.
No entanto, o perigo da idolatria existe sim e talvez seja o maior de todos os perigos aos quais o ser humano está exposto. Em meu último artigo, falei sobre a minha decepção com um ídolo da juventude, da esfera política, no qual muito acreditei. Bilhões de pessoas, divididas em grupos de variados tamanhos, se pautam pela mentalidade de alguns poucos lideres, que têm um poder incomensurável sobre a vida e a consciência das pessoas. Vive-se, morre-se e mata-se em nome de sistemas e de supostas verdades. E até mesmo aqueles que se autoproclamam ateus e se gabam de não acreditar em nada, com um mal disfarçado sentimento de superioridade com relação à “plebe crente, fanática e ignorante”, também não estão imunes à influência de outros que ofereceram o ateísmo como opção de vida. O crer em algo além de si mesmo é inerente ao ser humano, portanto, o ateísmo não é natural, é apenas mais uma escolha vinda de fora,
Ao chegar à meia-idade, é bastante válido nos perguntarmos o que trazemos de verdadeiramente nosso, qual é a nossa essência, em que, de fato, acreditamos, o que, de fato, esperamos. Pensemos sobre os valores que fomos recebendo, desde a infância, transmitidos por nossos pais, que por sua vez receberam de outros, que receberam de outros, depois, depois por aqueles que elegemos (ou que nos foram impostos) como mestres, como líderes, como exemplos a seguir e mais toda uma enxurrada de valores que vieram das leituras que fizemos, da mídia a que fomos expostos, das músicas que ouvimos etc.
Não pertencer a um grupo já é uma forma de pertencer, de estar inserido no grupo dos excluídos, dos divergentes, dos livre-pensadores, que raramente são originais, mas comungam uma mesma forma de pensar e até mesmo repetem uma linguagem composta de jargões e lugares-comuns, exatamente como os seguidores dos grupos estabelecidos. Além de nossa língua pátria, falamos várias outras línguas e a principal delas é a língua do grupo a que estamos vinculados. Em termos de religião, isso é muito fácil de detectar; conquanto nasçam igrejas e seitas em velocidade vertiginosa, isso para falar apenas do que acontece em nosso país, é muito fácil identificar a que tronco pertence um cristão, por exemplo. Eu costumo brincar que católico reza, evangélico ora e espírita faz prece. São três palavras diferentes para uma mesma ação e a grande questão não é semântica, a grande questão é: quem realmente fala com Deus?
Há uma música linda do Gilberto Gil que diz: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz, tenho que encontrar a paz, tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios […]tenho que ter as mãos vazias, ter a alma e o corpo nus.” Isso é difícil, pois, até mesmo para falar com Deus, o que deveria ser a coisa mais natural em nós, temos de pensar na postura –se em pé, sentados, de joelhos –, no local, nas palavras a usar… É difícil nos despirmos dos conceitos e do receio de estar fazendo do jeito errado, de estar pecando no simples ato de apenas dizer: “Deus, eu não te entendo, nem sempre acredito, mas eu amo você, por favor, cuida de mim.”. O que, de realmente nosso, de essencial, trazemos, especialmente nós, que já percorremos o maior trecho da estrada e que a cada dia nos aproximamos mais do seu final? O que trazemos, certamente, é o que levaremos e muito do não é nosso, do que veio de fora, do que nos moldou e até mesmo nos deformou, não poderemos levar, porque não nos pertence. Pensemos nisso.