Nos últimos dias, a ex-modelo e atriz Luiza Brunet, considerada uma das mulheres mais belas do país, veio a público revelar a violência praticada contra ela pelo seu companheiro, o empresário Lírio Parisotto que, segundo declarações da atriz e denúncia apresentada ao Ministério Público, a espancou num apartamento em Nova York, deixando-a de olho roxo com um soco e fraturando quatro de suas costelas com chutes e safanões.
Há cerca de um mês, uma prestadora de serviços da instituição na qual trabalho, faltou quase uma semana e, quando retornou, mesmo tentando disfarçar com maquiagem, ainda era bem visível a marca roxa em seu olho direito, provocada por um soco do marido. No primeiro caso, uma beldade que se destaca no mundo da fama e um milionário, no segundo caso, uma mocinha de pouco mais de vinte anos, mãe de uma menina de seis, que vive com dificuldade, ganha salário mínimo e vende queijos e doces de Minas para complementar a renda, casada com um “João Ninguém”. Em aparência, pessoas que não têm nada em comum, de universos totalmente diferentes, mas, na essência, pessoas iguais.
Filha de pai alcoólatra, cresci presenciando a violência doméstica. Só vi meu pai batendo na minha mãe uma vez, mas foi uma surra homérica, que deixou marcas e sequelas físicas que a acompanharam por toda a sua vida. Depois da humilhação e da violência sofrida, ela optou pela separação. Eu tinha apenas oito anos, mas me lembro de tê-la ouvido dizer que tolerava tudo, suportava tudo, mas, apanhar de marido, jamais. Infelizmente, alguns anos mais tarde, vi minha irmã enfrentar a mesma saga, além de uma grande amiga e várias conhecidas, como se apanhar do marido fosse lugar comum, parte da rotina de uma mulher.
Luiza Brunet, apesar da vergonha de passar por isso aos 54 anos, apoiada por amigos e familiares, teve coragem de denunciar. Minha mãe teve coragem de se separar, numa época em que a vida de mulher separada era o inferno na terra, mas, a mocinha que, todos os dias, em seu trabalho, veste um colete com a frase “Posso ajudar?” não foi capaz de ajudar a si mesma, não denunciou o marido agressor e nem se afastou dele. Eu a ouvi justificar para a gerente da agência que não podia se separar porque não tinha para onde ir, que os pais não a aceitariam de volta e, com o salário que ganha, não teria condições de manter-se com a filha pequena, não conseguiria alugar nem um cômodo e o marido ameaçou-a: se o denunciasse, apanharia mais.
Já ouvi relatos de mulheres que apanham, são traídas, humilhadas, violentadas de todas as formas dentro de seus lares e se dizem incapazes de denunciar ou deixar o marido ou companheiro agressor porque o amam e não sabem viver sem ele. A dinâmica da violência contra a mulher é algo tão doentio que, em muitos casos, os agressores acabam convencendo a vítima de que a culpada da violência é ela, que ela o obriga a bater nela, só falta dizer, como nossas mães faziam quando nos davam umas chineladas na bunda, que dói mais neles do que nelas. Não, não dói. Uma pessoa – geralmente maior e mais forte por sua constituição física – seja qual for a justificativa, não tem o direito de bater em outra. E, apesar de ele também ser uma pessoa doente, não dói mais nele coisíssima nenhuma! Dói nelas, que apanham, que são agredidas, que ouvem palavras torpes e de baixo calão, que são ultrajadas em sua dignidade.
Não sou partidária das separações e acho lamentável que os casais se separem tanto. A ruptura de um relacionamento é das coisas mais doloridas pelas quais uma pessoa pode passar e, geralmente, envolve também os filhos, que se machucam e recebem marcas difíceis – senão impossíveis – de apagar. Mas, me causa muito mais estranheza e indignação ver tantas mulheres aceitando esse tipo de situação vexatória, aviltante e perigosa, porque a violência começa com palavras, tons de voz, omissões e vai ganhando corpo até atingir a violência física e pode evoluir para o assassinato. Por que continuar dormindo com o inimigo, com o traidor, com o algoz? Por que continuar alimentando essa violência? Hoje, só não sobrevive sozinho quem não quer e dificuldades, fome, precariedade de moradia, falta de coisas materiais não é pior, para a mulher espancada e para os seus filhos, do que manter-se ao lado daquele que a agride.
Este tema é amplo e muito complexo, a violência tem raízes profundas e muito ramificadas, não é algo que se possa abarcar de forma simplória e totalitária, tanto que há tempos planejo escrever um livro sobre isso, o qual terá o mesmo título deste artigo. A violência costuma ser uma via de mão dupla, onde agressor e agredido se confundem e se revezam, porque, quando o respeito sai, a decadência entra em cena. Como disse antes, os homens que agridem também são doentes da afetividade e precisam de cuidados para curar-se e reposicionar-se como seres humanos, mas, não é oferecer o pescoço ao carrasco que vai fazer dele alguém melhor. Muitas vezes, é preciso afastar-se para ajudar a si mesma e ajudar ao outro; não adianta as mulheres que passam por esse tipo de situação acreditarem na falsa possibilidade de salvarem os seus maridos, de mudarem o comportamento e o temperamento deles, de controlarem a situação. Quando um casal chega ao nível da agressão física, não há mais controle algum. Em muitos casos, os homens também precisam de ajuda, mas, não é da ajuda de suas esposas ou companheiras. Elas só podem salvar a si mesmas e, quando não conseguem fazer isso sozinhas, devem procurar ajuda seja de familiares, de amigos, psicológica, espiritual ou da polícia, até se integrando em sistemas de proteção a vítimas de agressão que, em casos extremos, oferece a possibilidade de abrigo e de preservação da identidade, a fim de não serem localizadas por seus agressores quando correm risco de morte.
Luiza Brunet é uma linda mulher de meia idade que está vendo o seu castelo desmoronar e sabe que o país inteiro comenta o seu caso, posto que é uma pessoa pública. A minha ex-colega de trabalho é uma jovem anônima começando a vida e seu caso não interessa a ninguém. O que ambas têm em comum é a difícil e árdua tarefa de reconstruir-se, de recomeçar, de se olhar no espelho e lembrar do olho roxo e olhar além e ir além. Não é fácil. Mais que não ser fácil, é muito difícil. Não é apenas o corpo que é atingido, o olho que fica roxo ou braços e costelas que são quebrados. Olhos roxos clareiam, ossos quebrados cicatrizam, o difícil mesmo é reconstruir um coração e uma alma destroçados, em pedaços, reconstruir a autoestima e a crença no outro. Mas, é preciso agir, é preciso acreditar, é preciso amar a liberdade mais que a condição de vítima, a dignidade mais que a vergonha e o medo de se expor, a paz de espírito mais que a ilusão de poder controlar o outro.
Nenhum ser humano nasceu para ser ofendido, humilhado, agredido, e, sobretudo, nenhuma mulher nasceu para apanhar de homem e está em suas mãos se rebelar e não deixar que isso aconteça e, se já aconteceu ou vem acontecendo, é seu dever fazer com que cesse, com que não se repita. Não é possível mudar o outro, então se mude. De preferência, mude de perto de quem faz isso com você. Afinal, se na musiquinha, após a briga, o cravo sai ferido, a rosa sai despedaçada!