Há cerca de dois anos, fui convidada para fazer parte de uma associação de escritores. Fiquei muito feliz e lisonjeada com o convite e foi com muito gosto que mandei fazer o meu fardão e aguardei com alegria o dia da posse. Desde então, uma vez por mês, participo de uma reunião ordinária com meus colegas escritores. O atual presidente desse grupo é jovem e bastante entusiasmado, com uma série de ideias e projetos na área da literatura. Durante o recesso das atividades formais, no mês de julho, alguns confrades se reuniram para discutir esses projetos e o resultado foi muito bom, no entanto…
No entanto, ao retomarmos as reuniões de praxe, assim que as ideias gestadas durante o recesso foram expostas, um balde de água fria foi impiedosamente despejado sobre os entusiastas. Logo surgiu alguém, com umas anotações que sempre costuma carregar consigo, dizendo que isso e aquilo não poderia ser feito porque não consta do estatuto. Essa não foi a primeira e nem a segunda vez que presenciei esse tipo de coisa, aliás, desde que estou nessa agremiação, com raríssimas exceções, o tempo dos encontros e reuniões é gasto para se discutir o que está e o que não está no estatuto, a fidelidade a ele ou a sua alteração, sem que jamais se chegue a um consenso. Começo a me perguntar se os estatutos são feitos para as pessoas ou as pessoas para os estatutos.
Esse é um exemplo muito pálido do que ocorre na realidade na qual estamos todos inseridos. Deflagram-se operações homéricas de investigação de casos de corrupção, acusações são feitas, provas são obtidas, pontas são amarradas e um juiz, embasado no resultado de meses de árduo trabalho de várias equipes, determina a prisão de alguém e, antes que a população se alegre com a sensação de “justiça, afinal!”, outro juiz manda soltar porque encontra arrazoados legais a favor da soltura ou contra a prisão, alimentando a nossa sensação de que, quando a política está envolvida, nada é sério neste país.
Outro exemplo é quando o município, o estado ou a União determina a construção de uma obra e, no meio dela, levantam-se questões legais e para-se tudo, muitas vezes perdendo-se o que já foi investido, com grande prejuízo da população que paga pela obra e não consegue utilizá-la. Dessa forma, as coisas ficam atravancadas, presas, não andam. A sensação que eu tenho é a de um cavalo amarrado com corda suficiente para que possa correr, mas insuficiente para que possa prosseguir na sua corrida, ou seja, ele consegue avançar um tanto e logo é paralisado na sua tentativa, ficando preso e inútil. E me pergunto: porque nossa sociedade é assim?
Leis, normas e estatutos são necessários, pois precisamos de elementos que regulem o nosso proceder e a nossa vida de interação, mas, esses elementos deveriam servir de ajuda e não de entrave. Quando se cria uma entidade, como essa agremiação que mencionei, seu estatuto constitutivo deveria norteá-la, mas não restringir o seu desenvolvimento. Obviamente, podem ser feitas alterações nos estatutos, mas, se isso for feito a todo momento, acaba-se criando um tecido com tantas emendas que nem se consegue mais reconhecer o seu aspecto original. As pessoas deveriam poder ter mais liberdade para agir, para criar, para desenvolver ações que visam ao bem comum sem tantos empecilhos. Isso chama-se desenvolvimento.
No caso de nosso agrupamento de literatos, o que tem acontecido é que cada vez mais pessoas têm se afastado do grupo, deixando de comparecer às reuniões, porque ninguém aguenta sentar, numa amena tarde de sábado, achando que vai vivenciar expressões literárias e acabar presenciando só improfícuas discussões sobre normas e estatutos. E, já que falamos de literatura, recentemente, me inscrevi num concurso literário promovido por uma secretaria de cultura cujo edital determina que os textos sejam datilografados Pode tratar-se apenas de um descuido ou, então, é algo voltado para o futuro, porém preso pelo passado, pois no estatuto que rege a realização desse tipo de concurso deve estar escrito “datilografado” e, se não se muda o estatuto, não se pode mudar a palavra, ainda que muita gente mais jovem nem saiba que se trata de um sinônimo arcaico da palavra “digitado”.
Assim, vamos vendo esse prende-solta-solta-prende-solta de novo, mandos e desmandos na arena pública por conta de leis, decretos, normas e estatutos de há muito caducos e ineficazes e esse engessamento de pessoas que são tão metódicas ao ponto de esquecerem que esse arsenal existe para regulamentar a liberdade, mas, sobretudo, para garantir a manutenção dela, da liberdade de agir, liberdade de viver, liberdade de criar. Em matéria de seguir determinações, não podemos nos pautar pelo tudo ou nada: nem obedecer cegamente só porque alguém determinou que fosse assim e nem desobedecer apenas para ser do contra. Não digo que precisamos ser totalmente contrários e avessos a qualquer tipo de regimento, mas também não podemos nos deixar ser escravizados por eles. É preciso encontrar um meio-termo e fazer as adaptações necessárias para que a vida seja leve e boa de ser vivida e não uma absurda prisão por um lado ou uma mera e irresponsável libertinagem por outro.