“Você não sabe quantas coisas eu faria além do que já fiz, você não sabe até onde eu chegaria pra te fazer feliz…” Eu tenho um antigo aparelho de som que toca discos de vinil e esses versos ecoavam pela minha sala na maravilhosa voz de Maria Bethania quando ouvi gritos na rua, que agitaram meus cachorros que dormiam na garagem. A porta estava aberta e, enquanto tentava acalmar os cachorros, não pude deixar de ver uma mocinha bonita, embora de aparência um tanto judiada, gritando com um rapagão de bermuda, exibindo várias tatuagens. O rapaz mora do outro lado da rua e é usuário de drogas.
A menina, desequilibrada, empurrava o rapaz e gritava para que ele batesse nela e, entre as suas palavras desconexas, podia-se ouvir o lamento: “Por que você me trata assim se eu te amo tanto?” A resposta que consegui ouvir dele foi: “Sai pra lá encosto, atraso de vida! Some daqui!”. Essa não foi a primeira briga deles que presenciei, porque eles brigam em frente de casa, na rua, gritam um com o outro, se agridem. Então as palavras da música que Bethania ainda cantava em meu velho 3 em 1 foram fazendo mais sentido, como a trilha sonora de fundo para aquela cena bizarra e triste: até onde certas mulheres são capazes de chegar pra tentar fazer alguém feliz?
O tema “mulheres que amam demais” é recorrente em artigos sobre comportamento e relacionamentos. Existe até um livro com este título, da terapeuta norte-americana Robin Norwood, que inspirou os grupos MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas) que funcionam nos moldes dos Alcoólicos Anônimos e reúnem mulheres que sofrem as consequências de um modo de amar desajustado, muitas vivendo ao lado de homens agressivos e violentos, em relacionamentos doentios dos quais não conseguem se desvencilhar.
Mas, o que é amar demais? Quando se ama demais? Afinal, amar foi a principal recomendação de Jesus Cristo, que resumiu nisso todos os mandamentos. O problema é que, toda orientação, se retirada de seu contexto original e modificada, ainda que ligeiramente, deixa de ter o sentido que deveria e o que era para ser o nosso bem, a fonte da vida em equilíbrio e da felicidade, acaba se tornando um mal de consequências inimagináveis, a fonte de nossos desequilíbrios e infelicidades. Então, se, em aparência, amar pode fazer tanto mal, alguns vão para o extremo oposto: não amam, não se relacionam e não conseguem ter sequer os comportamentos mínimos de civilidade para conviver em sociedade sem ser desagradável, ferir e ofender os outros. Existe, então, um meio-termo?
Embora, às vezes necessário, eu não gosto muito de meios-termos, e nesse caso, o ideal é a interpretação literal, pois o problema todo está na pequena e aparentemente inofensiva modificação que se faz da segunda parte do grande preceito que originalmente diz “amar ao próximo como a si mesmo”, mas que passa a: “amar o próximo mais que a si mesmo”, não raro, muito mais! Deve-se desconfiar de pessoas que dizem: “Eu te amo demais!”, porque normalmente, após essa afirmação, vêm cobranças, manipulações, tentativas de atribuir culpa e a inevitável teimosia de querer mudar o outro. E esse mudar o outro geralmente não visa o bem do outro, mas o próprio bem, numa tentativa de levar o outro a agir como se quer e retribuir o demasiado amor que lhe é dedicado.
Esse mandamento único que deveria reger a vida dos cristãos é muito simples e aquilo que é simples não requer adaptações e interpretações, é como os sinais de trânsito: SENTIDO OBRIGATÓRIO, ESTACIONAMENTO PROIBIDO, CONVERSÃO À ESQUERDA, PARE. Placas de trânsito são claras, simples e objetivas e geralmente nossas tentativas de “reinterpretá-las” acabam em infrações, multas ou acidentes. Assim também com as normas de conduta essenciais. Porém, não é fácil segui-las. É horrível precisar parar o carro num lugar e deparar com a antipática placa de estacionamento proibido, ou precisar fazer uma conversão urgente e ver a placa de sentido obrigatório ou estar no auge da pressa e encontrar um enorme PARE à nossa frente. O amar é, sim, a essência da vida e está na base de todas as grandes correntes filosóficas e religiosas, mas, o “como a si mesmo” é que é o grande diferencial.
Sem exceção, as mulheres que amam demais sofrem com a baixa autoestima, são pessoas que não se aceitam, não se admiram, não se valorizam e até se desprezam, sentem raiva de si mesmas, não encontram meios de se amarem, então, vão amar “demais” aos outros. E o outro nem sempre é o parceiro romântico. Na meia idade é muito comum que os alvos desse amor desajustado sejam os filhos, os netos, aquelas pessoas que, na visão delas, estão sempre magoando-as, que nunca retribuem à altura, nunca reconhecem tudo os que essas “abnegadas” mulheres fazem por eles e lhes dão todo o combustível para as lamentações: “Ah, como eu sofro!”.
O amar demais sufoca, oprime, controla, aprisiona – tanto quem ama quanto quem é amado –, é um amor exigente. Cria-se uma simbiose, uma relação doentia e aquele que ama acaba se tornando uma espécie de mártir e fica ali a mercê, submisso às vontades do outro, sempre tentando modificar o outro, escravizando-se ao outro. O que vou dizer agora, pode parecer chulo, mas, há momentos que, não importa quem seja esse outro e o tamanho da importância que ele tenha na nossa vida, a única atitude sensata que podemos ter é mandá-lo à merda e seguirmos o nosso destino. No entanto, essas mulheres-mártires acreditam que tem o poder de fazer com que o companheiro, o filho ou o neto pare de beber, de usar droga, que arrume um emprego, só que, quase sempre, essas pessoas vivem às suas custas, moram, comem, bebem e se drogam com o seu dinheiro. Ou seja, elas alimentam o vício, porque também são viciadas no cuidar, no doar-se, no sofrer, no vitimizar-se. E, se o outro se recupera, se o outro sai fora, se o outro quebra o círculo vicioso, essas mulheres adoecem, até enlouquecem, porque não sabem e não suportam viver consigo mesmas, amar-se, respeitar-se, cuidar de si.
Aceitarmo-nos não é fácil. Tem dias que a gente olha no espelho de manhã e sente vontade de quebrar o espelho. O cabelo branco nos pesa, as rugas nos pesam, a vida mal vivida, as oportunidades perdidas nos pesam e nos pesam as renúncias que fizemos pelo outro e, mais ainda, a falta de reconhecimento do outro. Mas, amar o outro, sem nos amarmos, aceitar o outro sem nos aceitarmos é impossível. Mesmo que o outro não beba, não se drogue, não seja um folgado e nem uma pessoa violenta, quando o amamos mais que a nós mesmas, vamos, inevitavelmente, querer aparar as arestas, neutralizar as diferenças e mudá-lo. Porque mudar dói e a aceitação do que não se pode mudar dói mais ainda, então, se não conseguimos conviver com a dor de nos mudarmos e nem aceitarmos aqueles aspectos nossos que são matriciais, que não podem ser mudados, vamos nos empenhar ao máximo, investir nosso tempo, nossas forças e nossas vidas em cuidar do outro, viver pelo outro, mudar o outro, salvar o outro.
É claro que nem sempre chegamos a esses extremos e a consequência do pouco amor que sentimos por nós mesmas se dilui em coisas mais suaves como reparar a vida do outro, o corte de cabelo ou o tamanho da barra da saia da vizinha e nos tornamos apenas as moralizadoras e fofoqueiras de plantão.