Meu tio morreu de pênalti. Não, você não leu errado e nem houve erro de digitação. Eu não quis dizer pneumonia ou parkinson, a causa mortis do meu tio foi pênalti mesmo, o pênalti perdido pelo Zico no histórico jogo entre Brasil e França, nas quartas de final da Copa do México. Foi num sábado, 21 de junho, início do inverno de 1986. Um jogo difícil, muito disputado. O placar acabou empatado em 1×1 e foi decidido nos pênaltis. Sócrates e Júlio César também bateram mal e perderam as preciosas oportunidades de gol, cabendo à França a vitória daquele dia. Mas, o que ficou marcado, o grande fiasco, foi o pênalti perdido pelo Zico no finalzinho do segundo tempo, logo após a sua entrada em campo para substituir Müller.
Talvez, se tivesse ficado no banco, poupado por causa de uma lesão séria no joelho, o camisa 10 não teria voltado para o Brasil carregando o peso da derrota e amargando duras críticas que marcariam para sempre a sua carreira por essa lamentável falha e meu tio não teria morrido. Zico chutou e a torcida brasileira comemorou o gol que não foi gol. Ainda frio, jogando há apenas dois minutos, o craque chutou fraco, entregando a bola nas mãos de Bats, o goleiro da França. Houve gritos, urros, pancadas na mesa, palavrões, grandes lamentações e o infarto fulminante do meu tio Zé, na cidade de Matão. Ele morreu no sofá, na frente da TV a cores recém adquirida, fazendo menção de levantar-se, como se pudesse entrar na tela e ir direto para Guadalajara gritar um desaforo na cara do Zico. Ele já tinha passado dos 70, mas era um homem muito saudável e também muito calmo, muito tranquilo, do tipo que a gente jamais imagina que vai ter uma morte dessas, mas, aconteceu. Pobre tio Zé, 32 anos já se vão desde o seu sepultamento e sua inesquecível e inusitada morte! E o Zico nem veio dar as condolências à família enlutada.
Esses dias recebi uma mensagem com um balanço sobre a copa do mundo: “José Dirceu solto. Gleisi Hoffmann absolvida. João Cláudio, ex-tesoureiro do PP, solto. Reajuste de 10% nos planos de saúde. Reajuste de 27% no gás natural em Santa Catarina. Ministro Marco Aurélio concede liminar para soltura de Eduardo Cunha. Judiciário Estadual do Rio de Janeiro obteve 5% de aumento.Câmara de São Paulo aumenta ‘auxílio-esposa’ dos servidores. Gilmar Mendes arquiva inquérito sobre Aécio Neves no caso de Furnas.”. Não me dei ao trabalho de checar se todas essas informações são verdadeiras, porque o que me chamou a atenção nelas foi o fundo: coisas importantes acontecem e acabam passando despercebidas quando a atenção das pessoas está voltada para algo que possa representar uma distração maior e, tirando o carnaval, não há nada no Brasil que distraia tão unanimemente a população como a copa do mundo, incluindo até quem não gosta e não entende nada de futebol.
É como se algo mágico, algo místico tomasse conta das pessoas, igualando a todos, irmanando quem não se conhece, aproximando parentes, vizinhos e colegas de trabalho que mal conversam ou nem mesmo se cumprimentam fora da época dos ansiados jogos da copa do mundo. Bebe-se mais, grita-se mais, comemora-se mais, soltam-se mais rojões (para desespero dos cachorros) e sofre-se mais. É como se os jogadores tivessem um poder sobrenatural de mudar a vida dos torcedores, mudar os rumos da política, varrer a corrupção de nosso solo verde-amarelo, endireitar as veredas da justiça para que não sejam soltos empresários e políticos corruptos, presos à custa de operações minuciosas como a Lava-jato; poder de acabar com o desemprego, com a violência nos morros do Rio de Janeiro e de resolver os problemas de saúde e educação de nossa pátria, mãe gentil.
Torcer para que o Brasil ganhe, para que a nossa seleção chegue à final e vença, todos nós torcemos, mesmo que o futebol nos seja um tanto indigesto, porém, mais do que simplesmente torcer para que os atletas conquistem mais uma taça para enriquecer suas carreiras e suas contas bancárias com o polpudo prêmio de um milhão de dólares (3,7 milhões de reais) prometidos pela CBF para cada jogador no caso da conquista do hexa, nós torcemos por nós mesmos, torcemos uns pelos outros, torcemos para que a ilusão de mais um título conquistado pelo país do futebol arrefeça um pouco a nossa crescente decepção e indignação com os desmandos e injustiças que grassam nos altos, médios e baixos escalões desse nosso amado Brasil. Torcemos para que o mecanismo que engendra a corrupção e o carunchamento das douradas espigas das nossas esperanças e que só faz aumentar a nossa sede de justiça seja desmantelado e as coisas voltem a andar bem, a andar decentemente.
Não ganhar um milhão de dólares poderá não fazer grande diferença na vida de nossos atletas, que têm contratos multimilionários com seus times, quase todos fora do país. Para eles, um milhão de dólares a menos será apenas um milhão de dólares a menos. No entanto, para nós, torcedores, que paramos o país por algumas horas nos dias de jogo da seleção, será muito triste se, além de tudo o que ocorre na calada da noite de nossa distração, ainda tivermos de amargar mais uma derrota. Se isso acontecer que, dessa vez, ao menos, não seja por 7×0 e que o Neymar, como o Zico em 86, não perca um pênalti para que outro tio não venha a morrer e nosso povo heroico, com seu brado retumbante, possa continuar fazendo de conta, pelo menos por um tempo, que tudo vai bem em nossa pátria amada e idolatrada.