Os estudiosos afirmam que o século 20 trouxe mais progressos à humanidade do que os dezenove séculos da era cristã que o precederam. A juventude de hoje vive tão mergulhada nos efeitos desse progresso e suas muitas invenções que sequer imagina dificuldades que nós, de meia idade, vivenciamos, como não ter banheiro dentro de casa até meados da década de 1970 e termos de fazer nossas necessidades fisiológicas num penico ou na “casinha”, geralmente de táboas, construída diretamente sobre o buraco da fossa no quintal. E, mesmo dos que já contavam com o luxo de ter um banheiro dentro de casa, poucos tinham chuveiro elétrico e o banho na bacia ou de canequinha era uma realidade. Banheiro dentro de casa era simplesmente um luxo, acessível a poucos e isso não tinha necessariamente a ver com ser pobre, não ter dinheiro, o que não havia era tecnologia e desenvolvimento sanitário.
TV em casa, uma coisa até já meio obsoleta perto dos modernos celulares e smartphones, era uma raridade e os primeiros privilegiados a terem, precisaram se contentar em ver tudo em preto e branco por muitos anos. Telefone era outra coisa inacessível para a maioria e, quem conseguia ter, para fazer interurbanos, por exemplo, precisava da ajuda da telefonista, portanto, esse aparelho só era usado para coisas essenciais, para emergências e as conversas eram curtas e precisas. Jamais uma pessoa conseguiria prever, na década de 1990, por exemplo, ou mesmo nos primeiros anos do século 21, que nos tornaríamos dependentes dos telefones como das drogas e que ficar sem um celular e seus conteúdos como o Google, o Youtube, o Facebook e o Whatsapp provocaria crises de abstinência e completo vazio existencial.
Na época de minha meninice e início da mocidade, tínhamos em Monte Alto algo que desapareceu na poeira do progresso: as quitandas, os armazéns ou vendas, o pão e o leite entregues na porta, os verdureiros, doceiros, sorveteiros e bucheiros (vendedores de carne ambulantes) que nos atendiam em domicílio com os seus carrinhos com pouca higiene e produtos sem data de validade, mas todos frescos e de qualidade, que não nos causavam danos à saúde. Em Monte Alto, tínhamos o armazém do Falopa, o do Nelson Calió, o do Barbizan, o da dona Pina, o do João Davi, entre outros.
Era normal entregarmos a nossa lista de compras e os próprios vendeiros separarem os produtos e nos entregar em casa, marcando na caderneta para pagarmos no fim do mês. As relações existiam na base da confiança, o consumidor (palavra que nem constava de nosso vocabulário) confiava que o dono do armazém não o enganaria pondo produtos mais caros ou marcando o preço errado das coisas e o dono do armazém confiava que pagaríamos corretamente nossas contas no dia certo. Isso tudo foi substituído pelas grandes redes de supermercados, com uma estonteante variedade de coisas, onde só compramos se temos dinheiro ou cartões de crédito.
Era uma época em que, obviamente, adoecíamos e morríamos, posto que isso faz parte do ciclo natural da vida, mas não existia a gama de doenças que existe hoje; podíamos até ter vermes como lombrigas e solitárias, mas não éramos assediados pela quantidade de bactérias, vírus e tantas variações do câncer e de doenças nervosas e degenerativas como somos hoje. Não havia pet shops, nossos cachorros tomavam banho de chuva ou de mangueira e só tomavam a vacina da raiva nas campanhas da prefeitura no mês de agosto, mês de cachorro louco, e comiam os restos de nossa comida. E viviam 17 anos, 18 anos, morrendo de velhice. Os jovens, quando saíam de casa, era para casar ou para ir para cidades maiores em busca de especialização e novas oportunidades. Hoje, infelizmente, eles saem de casa para se drogar e morar nas ruas.
A inquietude sempre fez parte da juventude e um dia eu também parti atrás de um sonho, buscando a oportunidade de me realizar profissionalmente. São Paulo foi o meu destino e por quase três décadas eu vivi mergulhada nas consequências boas e ruins do progresso. Ralei, lutei, enfrentei moinhos de vento com a espada da minha ousadia, consegui o que queria, mas sempre guardei uma certa nostalgia, uma sensação de não pertencimento, uma caipirice crônica que a vida na capital não conseguiu abafar de todo. Foi então que, aos 50 anos, conheci Henrique Campos e com ele deixei a minha vida na capital, pois, embora tivesse me mudado para uma chácara numa cidade vizinha de São Paulo, viajava diariamente para a megalópole para trabalhar. E, com essa mudança, redescobri o mundo.
Na rua da minha casa, em Mogi Guaçu, tem um açougue que vende por mês, no velho esquema das cadernetinhas. De manhã coloco uma vasilha sobre o muro onde o leiteiro deixa o leite fresquinho, sem controle da vigilância sanitária, provavelmente com um pouco de água misturada, mas sem soda cáustica ou qualquer outro produto químico para me envenenar, leite com sabor de vaca de verdade e com cuja nata consigo fazer manteiga caseira. E tem o mercadinho do Lopes. Um pequeno mercado de família que conseguiu sobreviver no tempo, apesar da concorrência das grandes redes, como um Wallmart localizado a poucos quarteirões. Comprar no Lopes é viajar no tempo, é ser cumprimentada pelos donos e pelos empregados, é ter frutas e verduras de bom preço e excelente qualidade, sempre fresquinhas, é ter boa carne e pão saboroso e encontrar os produtos sempre no mesmo lugar, sem a estratégia de rearrumação das prateleiras e gôndolas usada pelos hipermercados para incentivar os consumidores a comprar produtos diferentes.
No Lopes, pode não ter a variedade de marcas que há nas grandes redes, mas lá eu sempre encontro tudo o que preciso, por preços justos. Também não há a avalanche de ofertas para atrair os consumidores, cujos descontos acabam sendo embutidos nos preços de outros produtos. Na rua tem os vendedores de laranja que vem da roça e duas vezes por semana passa um verdureiro, que traz sempre alface, couve e mandioca fresquinhas. Tenho vários cachorros e me dou ao trabalho de fazer comida para eles todos os dias já que, apenas em dois, não teríamos sobras suficientes para alimentar a todos. E eles são bonitos, gordos, velhos e saudáveis, sem ração balanceada e enriquecida com vitaminas, aromas artificiais e muita química.
Isso pode parecer apenas divagações de uma saudosista, mas, para mim, é qualidade de vida, excelente qualidade de vida. Não voltei para a minha cidade natal, mas fui para outra, também pequena e que me dá tudo de bom que eu tinha, mas do que precisei me apartar para aprender a dar valor. Tenho desafios e problemas, como todos, pois isso faz parte da vida e um dia, como todos, adoecerei e morrerei, mas, posso dizer, com todas as letras: sou uma pessoa feliz e realizada e nem mesmo tenho um celular com internet para receber milhões de mensagens de amigos virtuais que não posso tocar, abraçar, ouvir. Não estou antenada a tudo o que acontece no mundo, mas tenho paz de espírito, tenho amor de verdade e tenho o mercadinho do Lopes.