Quando eu nasci, na minha casa já havia cachorro, um velho perdigueiro chamado Duque, que vivia dormindo em toda parte em que se encostava, até que um dia acabou atropelado por um caminhão que entrou num terreno onde ele dormia, para levar material de construção a uma obra. Meu primeiro contato com a morte, aos quatro anos.
Depois veio a Chulica, que viveu quase dez anos ao meu lado. E a Breddy, o Pupi, o Zeugma, a Preta, a Branca, a Pequena, a Sucuri, a Xicória, a Chiquinha, a Flor, o Kazuo, o Sigmund, o Raposo, o Chicão, o Xangai, a Maria Amélia, a Brigite, a Maria das Dores, o Godzila, a Tainakã, o Chumbinho, o Nabuco e o Gaspar. Sem contar alguns que morreram pequenos e nem entraram nessa enorme lista.
A quantidade aumentou quando tive uma depressão severa e adotei duas fêmeas que me deram uma porção de filhotes que eu não doei e acabei encontrando, no cuidado com eles, o caminho da minha recuperação. Hoje, somando os meus com a Belinha e a Pretinha, que eram do meu marido, temos uma animada prole de dez crianças, ou melhor, dez velhinhos, porque a idade deles varia entre sete e treze anos.
Há um considerável gasto com comida, cuidar deles demanda tempo e, consideremos, catar cocô de dez cachorros é algo que dá trabalho, mas é uma tarefa que executo diariamente, com ânimo e alegria, pois só eu sei a importância que esses bichinhos têm na minha vida. Não troco o convívio das pessoas por eles, mas, quando eu mais precisei, foram eles os meus terapeutas, pois, a única coisa que me motivava a sair da cama, quando a depressão me tirava a vontade de viver, era a necessidade de cuidar deles, de alimentá-los. Quantas vezes me sentei no degrau da porta da cozinha chorando e um deles veio enxugar minhas lágrimas com lambidas…
São muitos, mas, cada um é único e muito peculiar, e um deles desapareceu, deixando um enorme vazio, o Gaspar. De todos os cães que tive até hoje, o Gaspar foi o mais tímido e medroso; sempre se escondendo de tudo e de todos, chorava por qualquer coisa, mal saía da casinha e tinha medo até de insetos, mas, sempre foi um dos mais carinhosos comigo. Apanhava quase diariamente dos irmãos Nabuco e Chumbinho, que roubavam sua comida, porém, quando eu chegava no quintal, ele se transformava, não chacoalhava apenas o rabo, mas se chacoalhava todo e o amor que dediquei a ele sempre foi especial, diria que tínhamos uma intimidade diferente, algumas palavras e tons de voz que eu só usava com ele, embora seja amorosa e dedicada com todos.
O Gaspar tinha certo instinto de tatu e, na chácara, onde moramos tantos anos, cavava imensos buracos, verdadeiros túneis, dentro dos quais desaparecia. Quando mudamos para Mogi Guaçu, o quintal era todo calçado e eu mandei quebrar um pedaço para que eles pudessem ter um pouco de terra e era neste pedacinho, que meu delicado Gaspar passava as suas horas, cavando seus buraquinhos. Um fim de semana nós viajamos e, ao voltar, descobrimos que nosso garoto tinha conseguido cavar por baixo do muro, entrou no quintal do vizinho e saiu em disparada quando este abriu o portão. Isso aconteceu no mês de julho e até hoje ele não voltou. Procuramos por toda parte, pusemos na internet, espalhamos cartazes, eu chorei e rezei desesperadamente, fiz até uma novena e pedi a Deus com toda a força da minha alma para que o fizesse voltar, mas, igual ao Duque, levado pela morte quando eu tinha quatro anos, ele não voltou. Acho que a única razão para Deus não ter atendido aos meus apelos é a possibilidade de ele estar morto.
Semana passada, voltando de carro de São Paulo para Mogi Guaçu, vi um cachorrinho atropelado no acostamento e me lembrei do meu pequeno medroso que, recém chegado a sua nova casa, tinha como referência a grande chácara de Atibaia e, certamente, foi para lá que tentou voltar, enfrentando os perigos da rodovia, a sede, a fome, o medo para procurar o seu lugar. Quantas vezes isso acontece com a gente na vida! Estamos ao lado de pessoas que amamos e às quais nos dedicamos, mas que guardam sempre um matiz de infelicidade e, um dia, inopinadamente, acabam partindo – física ou emocionalmente – para procurarem o seu lugar no mundo, um lugar que desejaríamos que fosse simplesmente o aconchego de nosso coração, mas, não é, porque cada um traz as suas questões, que nosso afeto não basta para fartar.
Ah, Gaspar, quanta falta você me faz, meu bichinho! Ah, meu Deus, quantos Gaspares há perdidos por aí, em busca de lugares que nem existem e quanta dor isso deve provocar em tantos amorosos corações! Por que, Senhor, o amor não é o bastante?