Há muitos anos, quando ainda era criança, li um poeminha que achei lindo e guardei um trecho dele em minha memória. Ontem, depois de ter ido a Monte Alto para enterrar a minha cunhada, esse pedacinho de poema ficou esvoaçando em meio os galhos outonais de minhas ideias. Incomodada com o ruflar de suas asinhas, cedi e fui procurar sua origem. Achei que nem conseguiria encontrar, mas, para a minha surpresa, o seu autor é um dos meus poetas preferidos, Manoel Bandeira, no entanto, eu nunca o vi em nenhum livro dele, apenas naquele velho livro de Língua Portuguesa da época da meninice. O poema é pequeno e muito singelo, aquelas palavras que em poucas linhas dizem tudo o que precisa ser dito:
“O pardalzinho nasceu livre. Quebraram-lhe a asa. Sacha lhe deu uma casa, água, comida e carinhos. Foram cuidados em vão: a casa era uma prisão, o pardalzinho morreu. O corpo, Sacha enterrou no jardim; a alma, essa voou para o céu dos passarinhos.”
A ideia de um céu para os passarinhos é das coisas mais lindas que já li. Uma preciosidade dessas só podia ser de Manoel Bandeira, é uma criação típica dele, a doer de tão delicada. Mas, afinal, por que me incomodou tanto a recordação desse poema?
Quando soube que minha cunhada estava doente, já desenganada pelos médicos, eu fiquei feliz e triste. Triste porque é sempre ruim nos despedirmos de uma pessoa querida, com a qual convivemos praticamente a vida toda (como sou bem mais nova que os meus irmãos, quando meu irmão mais velho, Zezinho, se casou com Antonia, a nossa “Nica”, eu tinha apenas cinco anos de idade. No começo, fiquei muito chateada com ela, por roubar o meu irmão querido e levá-lo para outra casa (mesmo que a distância entre a casa dele e a nossa fosse só a travessia da rua, era outra casa e isso era horrível para mim!). Assim, se passaram mais de 50 anos de convivência. No entanto, acho que o lado feliz da notícia sobrepujou o triste, vou contar por que.
Zezinho e Nica tiveram cinco filhos, todos com os nomes começando em Ro: Rogério, Ronaldo, Roberta, Rodrigo e Roseane, esta, como eu, bem mais nova que os irmãos. Acontece que a Roseane, apressadinha, partiu aos 15 anos, deixando Gabriel, seu filhinho bebê, e um imenso vazio na vida de todos nós, sobretudo no coração de sua mãe que, a partir de então, andou às apalpadelas, agarrando-se na muleta da esperança e no amor de seu netinho. Então, como eu acredito plenamente no reencontro entre as pessoas que se amam, fiquei triste por saber que logo ela partiria, mas feliz por saber que essa partida era a tão esperada viagem para o reencontro. E, além da Roseane, tem o meu irmão, que também já partiu, tem os pais dela, os meus pais e, como lá não tem Covid e pode ter aglomeração à vontade, por certo, haveria uma festa para recebe-la. Foi assim que me conformei.
Nica partiu no sábado à noite e foi enterrada numa manhã de domingo estonteantemente azul, uma manhã boa para soltar pipa, para conversar na calçada, para andar à toa por aí. Tinha muita gente no velório, gente que eu nem me lembrava, gente que eu não conhecia, o que mostra o quanto ela era querida. Nica foi uma mulher comum, nunca trabalhou fora, sempre se esmerou para cuidar da casa, dos filhos e do marido, que não era um poço de gentilezas, mas que, no seu jeitão meio tosco, sempre a amou e protegeu.
Posso dizer que ela teve uma boa vida e que foi feliz, porque, no seu jeito simples, ela escolheu ser feliz. Ela teve problemas, e muitos; teve decepções, e muitas, no entanto, uma coisa eu posso dizer dela com toda a convicção: Nica nunca reclamou de nada. Não era do seu feitio reclamar, maldizer a vida.
Ela era daquele tipo que aceitava as pessoas como eram e a vida como ela se apresentava. Sempre apoiou os seus filhos, sofreu com os seus fracassos, comemorou as suas vitórias e sempre os aceitou. Eu nunca a ouvi fazer uma crítica que fosse a nenhum deles e a ninguém, mesmo que ela tivesse motivos de sobra para criticar, se irritar, sofrer.
Ela era uma mulher simples, comum e inteligente, talvez uma das mais inteligentes que eu tenha conhecido, porque só as pessoas inteligentes se portam como ela se portava, agem como ela agia e vivem da maneira que ela vivia. Ela era enérgica quando tinha que ser, amável a maior parte do tempo e, quando precisava, para evitar atritos desnecessários, se fazia de boba e fingia não perceber desprezos, maledicências e controvérsias que chegavam até o seu portão. Até o portão apenas, porque ela não deixava esse tipo de coisa entrar dentro da sua casa.
Nos últimos tempos, a obesidade patogênica tolheu muito os seus movimentos, ela mal conseguia andar poucos metros sem ajuda, mas, nem mesmo esse confinamento a abateu. Já beirando os 70, ela descobriu o mundo virtual e ali, na telinha do seu celular, fez amizades, viajou o mundo, descobriu um universo que existe lá fora e que nunca fez parte da sua realidade, mas também não fez falta. Ela realmente teve uma boa vida, cumpriu o seu propósito aqui na terra e, como também sou poeta, peço licença a Manuel Bandeira para roubar o seu poeminha e adaptá-lo à minha irmã do coração: “Nossa Nica nasceu livre. A vida quebrou-lhe a asa e depois lhe deu uma casa, água, comida e carinhos. Foram cuidados em vão: a casa era uma prisão, a nossa Nica morreu. O corpo, a gente enterrou; a alma, essa voou para o céu dos passarinhos…”