“Teoricamente, sabe-se que a terra gira, mas, de fato, não damos por isso, o chão que pisamos parece que não se mexe e vivemos tranquilos. É o que se passa com o tempo na vida.” (Marcel Proust – Em busca do tempo perdido)
“Não tenho tempo!” Esta é uma das frases que mais ouvimos e que mais falamos (para nós mesmos e para os outros). Quantas coisas simples, prazerosas, relevantes, irrelevantes, que não influenciam em nada ou que podem alterar a nossa vida, já deixamos de fazer alegando falta de tempo? Deixar de agir, de estar junto, de descansar, de ouvir aquela música, ler aquele livro, assistir àquele filme, telefonar ou escrever para aquela pessoa, podar a trepadeira, dar banho no cachorro, brincar com o filho, ouvir a pessoa amada, arrumar a gaveta, são algumas das coisas que adiamos por falta de tempo. É incrível como temos cada vez menos tempo, nos sentindo cada vez mais sobrecarregados e menos felizes.
No entanto, cumprindo a profecia do roqueiro Raul Seixas, chegamos ao dia em que a Terra parou. Já não precisamos de tempo para nos conduzirmos ao trabalho, corrermos para a academia, levarmos e buscarmos os filhos na escola, enfrentarmos trânsito, engarrafamento, dificuldade em achar vaga para estacionar. A Terra parou. Nós paramos. Estamos (em nossa maioria, para desgosto do Bolsonaro), fechados em nossas casas, aprendendo uma nova forma de trabalho, de estudo e, sobretudo, de convívio. Agora temos tempo. A justificativa da falta dele não cola mais.
“Em busca do tempo perdido”, do escritor francês Marcel Proust (1871-1922) é uma das obras mais importantes da literatura mundial. Proust levou 14 anos para escrevê-la, entre 1913 e 1927. Com sete volumes e cerca de 3.500 páginas, a obra fala, essencialmente, daquilo que nos escorre pelas mãos e não retorna: o tempo. O enigmático escritor francês que revolucionou a forma de se escrever romances, passou grande parte da vida recluso em sua casa, apenas dedicando-se à elaboração de sua obra.
Esta não é a primeira vez que o menciono em um artigo, porque acho fantástica a sua obstinação, a sua determinação e a minudência com que se dedicou à elaboração deste livro que aborda várias nuances dos dramas humanos enfrentados por todos nós, que passamos uma parte da vida sem tempo para fazer as coisas que nos importariam fazer e a outra parte lamentando o tempo perdido, sem tê-las feito e sem poder fazê-las mais.
Afirmam os ecologistas e os estudiosos da Física Quântica que somos conectados a tudo e a todos, formando um grande organismo e, quando partes desse organismo se desorganizam, tudo se desorganiza, o organismo todo adoece. Esse é um tipo de assunto que aborrece a muitos e parece uma grande bobagem, mas, ao que parece, esse imenso organismo doente não aguentou mais o tranco de se manter em pé e precisou se deitar para descansar, por isso, a Terra parou – e nos parou. Agora estamos em casa e temos tempo. Muito tempo. Mais tempo até do que gostaríamos de ter. Tanto tempo que muitos já nem sabem o que fazer com ele.
Os que estão em sistema de home office, continuam participando de reuniões, se especializando e executando as suas tarefas à distância, mas elas não ocupam todo o tempo. Os serviços de streaming nos oferecem uma infinidade de filmes e conteúdos para os quais temos tempo agora, mas, acabamos caindo num poço nefasto e isso também já começa a se tornar enfadonho. Puxa, estamos fechados em casa com a família, com as pessoas que amamos, para as quais quase nunca tínhamos tempo ou que não tinham tempo para nós, isso é incrível! Podemos comer juntos, assistir TV juntos, sentar para conversar, porém, acabamos descobrindo que ficaram tantas coisas não ditas por falta de tempo ou de interesse, nosso ou do outro, que agora não sabemos dizê-las sem nos magoarmos e, enquanto muitos curtem estar com a família, outros descobrem que vivem na mesma casa com estranhos, pessoas que já não reconhecem e isso começa a se tornar insuportável. Chega a dar saudade da falta de tempo…
Hoje vi um desses videozinhos de besteirol que circulam aos montes nas redes, com uma mulher sentada ao lado de um bebê deitadinho no sofá com a frase “Não aguento mais cuidar do neto da minha mãe!” Isso me levou de volta ao passado, quando comecei a ficar sozinha em casa, a partir dos oito anos, porque minha mãe precisava trabalhar. Meus irmãos já eram moços e tinham que trabalhar também, além do pai, que eu pouco via. Acabei sendo uma autodidata da minha própria educação, com falhas, lacunas, medos e culpas que refletem ainda hoje. Só Deus sabe quanta falta eu sentia da minha mãe, de seus abraços, de comer junto com ela na mesa da cozinha, uma comidinha feita na hora, de ouvi-la cantar enquanto costurava ou cuidava da casa, até de suas broncas e eventuais chineladas. Esse convívio maravilhoso durou até eu aprender o caminho da escola, fazer as tarefas sozinha, esquentar o almoço, vestir o uniforme, fechar a casa.
Diante dessa lembrança, ponho-me a pensar em quantos filhos felizes temos nesse tempo em que o Coronavírus colocou um cadeado em nossas portas, nos impedindo de sair. Os maiorzinhos entendem que o pai e a mãe estão em casa, mas precisam trabalhar, então, respeitam o espaço deles, mas desfrutam da segurança e da alegria de tê-los por perto. Os pequenos, porém, querem estar no colo a todo momento, se sobreporem aos notebooks que pais e mães usam para trabalhar, pedir guloseimas, fazer brincadeiras, deitar juntinho, sentir o cheirinho, mexer no cabelo e na roupa da mãe sem ter medo de desarrumá-la, porque agora ela vai trabalhar, mas não vai mais sair de casa para fazer isso. Até os cães e gatos estão transbordando de alegria pela companhia de seus amados humanos. Agora, temos tempo para reaprender a falar, a ouvir, a tocar, a fazer nada juntos.
Há também aqueles casos de pessoas que estão passando o seu isolamento sozinhas e dessas, verdadeiramente me apiedo, porque é bom estar só, mas não o tempo todo, com uma ameaça rondando lá fora. Nesses casos, deve fazer falta até ter alguém para brigar, para discordar. E isso se torna particularmente triste se esses solitários são idosos. Em minha família tenho dois nessas condições. Minha irmã, de 66 anos, que mora em São Paulo e meu irmão, de 69, que mora em Sorocaba. Bem, estar sozinho pode, sim, ser enlouquecedor, amedrontador, mas, por outro lado, pode produzir resultados muito ricos, pode gerar obras primas e muita iluminação interior.
Proust, que escolheu passar grande parte de seu tempo recluso, trabalhando em sua grande obra, morreu de pneumonia aos 18 de novembro de 1822. Neste momento em que o fantasma de uma pneumonia mortal se abate sobre todos nós, encerro este artigo com mais um pensamento dele, para refletirmos. Afinal, é bem melhor pensar sobre coisas mais sérias e profundas do que a barafunda de nosso governo e o esforço de nosso presidente em ser do contra e permanecer nas manchetes devido ao seu antagonismo a tudo e a todos: o tempo e a vida, os bens mais preciosos que temos e, de fato, agora os temos; até quando, não nos é dado saber.
“As terras que desejamos ocupam a cada momento muito mais espaço em nossa vida verdadeira do que a terra onde efetivamente nos achamos.”