Cresci ouvindo dizer que o Brasil era um país pacífico, com pessoas amorosas, receptivas e empenhadas em manter essa condição que sempre passou uma excelente imagem sobre nosso povo, aqui dentro e lá fora.
Essa característica de povo ordeiro, fraterno e não violento era uma das coisas que nos fazia sentir orgulho por sermos brasileiros e, fora daqui, causava simpatia e admiração. Nos últimos anos, porém, a política conseguiu a proeza de criar fissuras nessa estabilidade e uma ruptura sem precedentes na nossa história.
Eu repeti, muitas vezes, que nunca haveria guerras ou conflitos armados no Brasil. Hoje, infelizmente, já não posso dormir com essa certeza e, considerando a quantidade de pessoas armadas que temos e uma belicosidade aprendida em treinamentos intensivos de doutrinação, já não considero a guerrilha um ato improvável.
ADVERSÁRIOS E ALIADOS
Quando vejo Lula e Alckmin juntos na liderança do país e me recordo das farpas trocadas entre eles e da animosidade outrora existente entre os correligionários de seus partidos, penso sobre o terreno estranho e surpreendente que é a política. Não acredito que seja possível uma aliança futura entre Bolsonaro e Lula, por exemplo, mas também não arrisco dizer que seja impossível. Nossa memória é curta e os apelos e as estratégias políticas são tão bem elaborados e conduzidos que, neste campo, coisas que até mesmo Deus dúvida podem perfeitamente acontecer. O livro “1984”, de George Orwel, mostra isso claramente.
Houve uma época – de 1966 a 1979 – em que o Brasil só tinha dois partidos políticos, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), representando o governo, a situação, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), representando a oposição, com o Partido Comunista atuando na clandestinidade.
Com o processo de redemocratização do país, novos partidos começaram a ser criados e hoje são tantos e fazem tantos acordos entre si, mudam tanto de lado e trocam tanto de aliados, que já é até difícil saber quem é quem.
MAIS QUE PARTIDOS, UMA RELIGIÃO
O PT (Partido dos Trabalhadores), considerado como partido de esquerda, com cara de oposição mesmo quando na situação, tem as suas características de doutrinação e é muito difícil alguém deste partido deixar de ser petista; apesar de abarcar muitos ateus, é quase uma religião.
A novidade, foi o bolsonarismo, que não está ligado necessariamente a um partido, mas, a um ícone, que foi apresentado à grande maioria como um mito e, em apenas quatro anos, conseguiu uma legião de seguidores fanáticos e fiéis, mudando a configuração da união nacional que mantinha a “ordem e progresso” da nossa bandeira. Esse movimento exclui os ateus e usa a religião.
Infelizmente, o progresso debandou há tempos e a ordem foi seriamente comprometida com os últimos acontecimentos, cujos reflexos reverberarão por muito tempo e não podemos ter ideia do que ainda vai acontecer pela frente. O que sabemos é que hoje existe um Brasil paralelo.
Como disse há algumas linhas, um petista dificilmente será demovido de suas ideias e deixará de ser petista, a mesma coisa com os bolsonaristas. E é praticamente impossível que qualquer dessas duas correntes sequer aceite algo de bom que possa haver no outro lado. É um cabo de guerra entre duas forças consideráveis, em que cada uma se supõe a única certa. E a coisa toda é tão contagiante que sobraram poucos neutros.
QUEM PAGA O PREÇO DO FANATISMO?
É com dor no coração que acompanho essas transformações, porque, na prática, amigos se separam, conhecidos se estranham e familiares se estremecem. Vemos o embrião de um movimento separatista e talvez seja bom pesquisarmos sobre culturas que vivem essa realidade, sobretudo no Oriente Médio, para vermos a extensão do horror ao qual se pode chegar. Extremismos nunca são bons para ninguém
Logo depois do fatídico 8 de janeiro, me vi bloqueando, em todas as redes sociais, um amigo de décadas, que também nasceu em Monte Alto e, como eu, foi buscar a sua realização profissional na capital. Uma pessoa que eu não conhecia até meados da década de 1990, quando me escreveu uma simpática cartinha elogiando meus artigos, escrita naqueles papéis-envelopes que o Correio vendia.
Desde então, foram três décadas de amizade que sofreram uma ruptura quando ele se cobriu com uma bandeira verde-amarela e foi para a frente de um quartel. Uma posição que eu teria respeitado, mesmo que não concordasse com ela, mas que extrapolou o meu limite de aceitação quando começaram a aumentar as mensagens e as agressivas ironias enviadas por ele.
Acho que, mais que as notícias, os vídeos e quaisquer atos extremistas, foi a atitude deste meu amigo tão querido que me fez ver que nasceu no Brasil uma realidade de “nós e eles” e isso ficou claríssimo quando eu tentei argumentar que era possível sobreviver e fazer escolhas sem se deixar cooptar por um ou outro lado e ouvi a resposta: “quem não está do nosso lado, está contra nós”.
Tentei pedir a ele que mantivéssemos a nossa relação acima das opiniões políticas e que não trocássemos mensagens de tendenciosas e agressividades, mas, infelizmente, ele já estava rendido e não atendeu ao meu pedido, aumentando o volume de mensagens, ora absurdas, ora grotescas. Ele estava doutrinado e nada me restava fazer além de bloqueá-lo nas redes sociais e viver o luto de sua partida.
Esse era o tipo de amigo de amplos conhecimentos, com o qual se podia conversar sobre tudo, que, infelizmente, de um momento a outro, só passou a ter um assunto, uma visão, uma direção e nenhuma tolerância por qualquer contra-argumentação.
NÓS CONTRA ELES. ELES CONTRA NÓS
O triste é que isso virou lugar comum. O “nós e eles”, “eles e nós” fica cada vez mais popular. Independentemente do lado que você esteja, ou até se não tem lado nenhum, você precisa tomar cuidado com o que fala, onde fala e com quem fala, porque uma simples conversa de manicure, de boteco, de cafezinho na padaria ou na fila do açougue pode suscitar um desentendimento, uma briga, uma confusão.
É como se fôssemos obrigados a escolher um lado, escolher entre o certo e o errado, com cada um achando que o certo é o seu lado e o do outro, o errado. Vai-se perdendo a força e a riqueza do diálogo e o crescimento proporcionado pelo debate sadio da divergência. E, não se iludam, é difícil não escolher um dos lados, e o outro lado sempre parecerá absurdo.
Só os poucos que conseguem se manter fora desse afunilamento, conseguem ver com relativa isenção e autonomia os absurdos que se cometem de um lado e de outro. No 8 de janeiro, vimos a truculência de quem não aceita perder e não acredita nos argumentos e, como consequência disso, estamos começando a ter atitudes temerárias, como lamentar a falta de truculência da polícia, coisa que sempre nos afligiu e, na torcida legítima pela justiça, começamos a achar comum se soltarem presos condenados para deixar lugar nos presídios para indivíduos, em sua maioria, usados como massa de manobra.
Não penso que haja inocentes ali, mas, há muitos iludidos, ludibriados, pessoas que se apegaram a uma falsa esperança e se deixaram levar, enquanto os líderes dos atos de vandalismo e terror assistem de camarote e esperam pelo próximo capítulo, manipulando o que podem manipular.
UM MONSTRO GERA OUTRO MONSTRO
Creio que nunca, neste país, nem na época das Diretas ou da Constituinte, se falou tanto em democracia. O que me preocupa, é que, sem nos darmos conta, podemos estar vendo a gestação de um novo monstro e, não demorará para nos surpreendermos com a “ditadura da democracia”, em nome da qual tudo pode, tudo vale, tudo encontra legitimação.
Tem um lado que ainda acredita no golpe e torce para que um milagre aconteça e, com a ajuda do Exército, Bolsonaro retome o poder. O outro lado torce para que ele seja julgado ou condenado, ou talvez apenas condenado, e que volte para o Brasil e seja colocado atrás das grades. São dois desejos basais, primários, ingênuos e perigosos.
Eu, que já fui petista em minha mocidade e que em 2018 perguntei “Por que ele não?”, torço apenas para que o mito se mantenha nos Estados Unidos ou se mude para a Rússia, para a Escandinávia, para Marte, e caia no ostracismo e no esquecimento, mais cruel e mais justo que uma desejada prisão, para que esse monstro que ele ajudou a criar perca as forças e não alimente um outro monstro, para que saíamos deste ringue de MMA, percamos a necessidade de ter heróis, que naturalmente se transformam em tiranos, e possamos ter apenas governantes, que tentem resolver os problemas e desafios deste país, que não são poucos.
Desejo muito, mas muito mesmo, que essa rachadura possa se fechar, que essa fissura possa ser colada e, ainda que restem remendos na nossa história, que a nossa bandeira, a nossa honra e o nosso espírito amoroso, generoso e pacífico possam ser restaurados e que nos vejamos como o que realmente somos: brasileiros, homens e mulheres privilegiados por terem nascido na melhor nação deste planeta, o coração do mundo e um provável berço da humanidade do futuro. Mas, com tanta animosidade, não consigo fazer ideia de como isso vá se dar.