Para alguns, o carnaval é festa, para outros, é descanso. Há quem viva do carnaval, trabalhando o ano inteiro em fantasias, alegorias, carros cada vez mais surpreendentes. Há aqueles que se esmeram para criar o melhor samba-enredo. Há quem passe o ano inteiro treinando os passos, fazendo condicionamento físico, aperfeiçoando a ginga, é o caso, principalmente, dos mestres-salas e das porta-bandeiras. Para muitos é ocasião de viajar, ir à praia, se divertir, com samba ou sem samba, tanto faz.
Para outros, carnaval é festa do demo, época em que todos os espíritos maus andam soltos, doidos para fisgar as pessoas para o lado das trevas. Carnaval, ocasião de pecado, luxúria, bebedeiras, drogas. Festa da perdição, ainda mais quando a ousadia dos homens chega ao ponto de criar uma alegoria com a representação do diabo arrastando Jesus Cristo, vencendo-o, como aconteceu em 2019, no desfile da escola de samba Gaviões da Fiel, em São Paulo. É, isso foi mal pra caramba, religiosos e não religiosos, até ateus, concordaram nesse ponto. Essa alegoria extrapolou os limites do respeito para com a fé e o sentimento de religiosidade.
Para as pessoas desse grupo, o carnaval é época de recolhimento, de retiros espirituais, de oração, meditação, boas vibrações para quebrar as energias negativas que pairam no ambiente. Ou apenas um tempo para ficar em casa, sem fazer nada, descansar, gabaritar aquela série da Netflix, fazer uma maratona de filmes, comer pipoca com guaraná, coçar, largatear.
Há quem lucre com o carnaval, de lojas que vendem máscaras, fantasias e roupas adequadas para a folia, aos donos de clubes, grupos musicais e camelôs. É bom, aliás, ótimo, para aqueles que fazem bico de garçom ou de segurança. Época de ganhar uns bons trocados. Lucram também os fabricantes e comerciantes de bebidas: água mineral, refrigerante, cerveja, destilados. E, como no carnaval vale tudo, lucram enormemente os cultivadores e distribuidores de canabis e outras drogas. Um verdadeiro êxtase.
E, de outro lado, há quem perde. É feriado, bancos não abrem, parte do comércio não abre, prejuízo no bolso. Mas, gostando ou não gostando do carnaval, o que ninguém esperava é que este ano não tivesse carnaval. Isso é algo surpreendente, inédito. Na minha existência de mais de 50 anos, é a primeira vez que não ouvirei no rádio, como na época de criança, e nem verei na televisão, aquelas intermináveis propagandas do carnaval, “no carnaval da Globo, a gente tá de bem com a vida, lá vou eu…”.
Imagino quanta gente indignada, chorando, quebrada, por não ter carnaval. Outros felizes e satisfeitos. Alguns locais, a despeito de não ter a festa de Momo e os costumeiros desfiles, mantiveram o feriado, mas, a maioria cancelou o feriado e seguiu a rotina normal.
Nós ainda estamos no meio da pandemia, acho até que já nos acostumamos com ela, lavamos menos as mãos, diminuiu o consumo de álcool gel, não trocamos a máscara com tanta frequência e tocamos nela mais do que deveríamos. Alguns a usam abaixo do nariz, que é o mesmo que não usar a máscara (esses faltaram à aula de Biologia que ensina que o processo da respiração consiste em o ar entrar pelo nariz e sair pela boca). Outros a usam no pescoço, como se estivessem com a garganta inflamada ou com cachumba. Por estarmos no meio do “fervo” como diz a garotada, não percebemos direito a devastação que esse vírus está causando. Devastação na Saúde, na Economia, na Educação, nos costumes, na vida social, nas interações; no culto aos mortos, algo tão necessário e que nos é tirado devido ao perigo de contágio, interferindo no processo de luto que requer estar ao lado do caixão da pessoa amada, ter tempo de velá-la, de se despedir dela, fazer as exéquias e enterrá-la dignamente.
Provavelmente verá melhor essa devastação, lá no futuro, quem consultar a história. A nossa história. Uma história que, apesar de alguns percalços, ia bem, corria-se o risco de uma guerra, atos terroristas aqui e ali, algumas catástrofes naturais, mas, no geral, tudo ia bem. Nós, sujeitos desse período da história, dessa época de transição, desse hiato que dividirá o tempo entre antes e depois da pandemia do coronavírus, talvez nem vejamos a gravidade e as consequências do que está acontecendo ao nosso redor e, muitas vezes, dentro de nossas casas, no nosso trabalho, na nossa vida, enfim.
É fevereiro e não tem carnaval para quem “mora num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza.” É claro que a infeliz alegoria de uma escola de samba, dois anos atrás, não poderia ser responsável por essa tragédia que se abateu sobre o mundo inteiro, mas, é uma boa figura de linguagem, uma boa alegoria, pensar na decepção daquele diabo que humilhou Jesus Cristo na passarela do samba, arrastando-o e mostrando que era mais forte. Até para ele, é fevereiro e não tem carnaval. Os quatro dias reservados à grande festa passaram, quem tinha que trabalhar, trabalhou e quem folgou, gostando ou não, teve de ficar em casa, usando máscara, mas sem poder vestir a fantasia, encher a cara e ir sambar na avenida. É fevereiro, mas não tem carnaval!