Tornou-se emblemática a cena da banda tocando enquanto o Titanic afundava. As pessoas gritavam, lançavam-se ao mar, procuravam por um socorro inexistente e a água ia tomando espaço dentro do navio. Pessoas com medo de morrer, pessoas atônitas pela certeza de que iriam morrer e a banda tocando. A cena, no filme, é comovente, no entanto, ela é baseada em relatos de sobreviventes do naufrágio: na vida real, a banda realmente tocou até o afundamento do navio. O que terá se passado nas mentes e corações daqueles homens que sabiam que iriam morrer, viam o pânico, o navio rachando no meio, mas, mesmo assim, continuaram tocando? Não podemos saber o que aconteceu com eles durante, mas sabemos o que aconteceu depois: todos morreram afogados.
Por aqui, enquanto nosso Titanic faz água e vai afundando num mar de incertezas, medo e avanço veloz da pandemia, não há músicos, mas há palhaços, fantoches e lutadores tentando garantir a distração dos tripulantes e passageiros com seu espetáculo grotesco. Poucas coisas na vida tiveram o poder de me perturbar tanto quanto a péssima atuação do presidente da República, tanto que estou até evitando ver notícias sobre ele, o que é quase impossível, pois, com seu esmero em ser ou parecer imbecil, toda hora nos deparamos com alguma coisa que nos choca. Ele faz tanta questão de ser o centro das atenções e de provar que quem manda é ele, que adoece de inveja e ciúmes de todos aqueles que, subordinados a ele, brilham no desempenho de suas funções.
O mais grave disso é que agora ele parece disputando com o vírus, não no sentido de apresentar esforços concretos para tentar controlar os efeitos nocivos da pandemia, mas apenas para aparecer mais que o Coronavírus, porque, diante da mediocridade, até um micro-organismo brilha mais. É de dar dó. Dó do povo, dó dos doentes a espera de vagas nas UTIs lotadas, dó dos mortos pela Covid-19, dó dos familiares que, além de não poderem viver dignamente o seu luto, ainda têm de suportar ser ultrajados pela boçalidade do chefe maior da nação, o cara que manda, o cara que não é coveiro para saber o número de mortos, o cara que diz “E daí que está morrendo muita gente?”. O cara que é messias, mas não faz milagres. O cara que foi posto para gerir uma nação, mas não tem competência nem para ser síndico de um prédio de quatro andares.
A cada semana eu tento me comprometer comigo mesma a falar de flores, de cachorros, de pássaros, do primeiro cacho que nasceu, exuberante, na bananeira do meu quintal, mas, quando sento diante do computador, saturada desse prato indigesto, não tenho como não falar sobre esses acontecimentos nefastos, medonhos, desumanos, cruéis, lamentáveis, desesperadores, produzidos por esse bronco que ocupa a cadeira presidencial, afinal, o momento é de usar máscaras para evitar a contaminação e não de usar venda nos olhos.
A dor que sentimos pelas mortes que aumentam a cada dia, antes lá fora, e agora aqui, pertinho de nós, a morte que ronda ao nosso redor e que pode atingir a qualquer um de nós, não precisava ser ampliada pelo descaso, crueldade, idiotice e ignorância desse presidente. No entanto, infelizmente, é. É uma ferida profunda, purulenta, no auge da inflamação e o tipo vem e mete uma lâmina dentro da ferida e a faz aumentar de proporção e de intensidade de dor.
Já vínhamos navegando num barco cujo leme escapara das mãos do condutor e errava mar adentro, colocando-nos a todos em perigo. De repente, o mar ficou revolto, veio uma tormenta inimaginável e, se ficou difícil para os navios bem conduzidos, com marujos experientes e comandantes com pleno poder de navegação, imagine para nós, que já singrávamos o mar ao léu, sem rumo certo e com bússolas inoperantes. Agora, nosso enorme barco começa a afundar e a bandinha continua tocando; toca, incansavelmente, os acordes da marcha fúnebre, enquanto o palhaço e suas marionetes dançam sobre o tombadilho, engolindo fogo e cuspindo-o no ar, numa tentativa de chamar mais a atenção que a própria tragédia, enquanto a água já alcança o convés, o casco se racha ao meio e corpos, aos milhares, são lançados ao mar.