Deixa partir

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De todas as coisas difíceis que enfrentamos, uma das piores é deixar partir, deixar ir aquilo que já não nos pertence, aquilo que já não pode ficar, sobretudo se a partida é para um lugar que não podemos acessar, o infinito, por exemplo.
Lembro-me que, quando era pequena, não existiam garrafas pet e, para comprar refrigerantes ou cerveja era preciso levar o vasilhame, uma ação que recentemente a Coca-Cola até tentou reviver, dando desconto no refrigerante de garrafas retornáveis. As garrafas pet provocam uma poluição sem precedentes, mas a praticidade oferecida por elas e a tímida adesão às garrafas retornáveis demonstram que, por um bom tempo ao menos, elas reinarão.
Mas, retornando à época da minha infância, vamos relembrar como funcionava o comércio de bebidas com vasilhames ou “cascos”. O mais comum era as pessoas terem os cascos em casa e levarem ao bar, empório ou mercado quando queriam comprar refrigerantes ou cerveja. Davam a garrafa vazia e levavam a garrafa cheia. Se não tinham garrafas, podiam “alugá-las”, ou seja, pagar um depósito que era devolvido quando levavam as garrafas de volta. Dependendo da relação de amizade e confiança estabelecida entre o freguês e o comerciante, este podia emprestar os vasilhames, acreditando que eles seriam devolvidos. E podia-se também comprar as garrafas para ter um estoque delas em casa e facilitar as coisas.
Bem, o que tem a ver a garrafa com a partida? Tem muito a ver. Nossos corpos são como os vasilhames, cheios da essência da vida. Mas, são vasilhames emprestados, que um dia vamos ter que devolver. Alguns acreditam que eles não servirão para mais nada, como acontece com a maioria das garrafas pets que lotam os lixões e aterros sanitários; outros acham que é possível reciclar, uma ação de responsabilidade da natureza, que transforma nossa matéria em compostos que servirão a outras finalidades. E há os que acreditam que esse precioso elixir pode ser envasado em novos vasilhames e ser de novo colocado no mercado da vida através da reencarnação. A grande questão é que um dia a vida se consome ou se derrama em acidentes vários e o vasilhame tem que ser devolvido.
No caso das garrafas de vidro, havia pessoas que tinham uma certa obsessão por elas e as compravam em quantidade – ou, quando menos honestos, tomavam emprestadas nos empórios e bares e “esqueciam” de devolver – acumulando-as em seus quintais. Ainda bem que não tínhamos dengue, chikungunya e zika naquele tempo…
Continuando esse paralelo entre as garrafas e os corpos, no último domingo vi uma de minhas garrafinhas se esvaziar. Ela era preenchida por um líquido precioso do qual eu fui sorvendo pequenas doses ao longo de 14 anos de convivência. O nome dela era Flor, uma delicada cachorrinha vira-lata branca e preta que foi abandonada perto de uma avícola em São Paulo. Eram ela e sua irmã, a quem batizei de Chiquinha, magrinhas, judiadas. Levei as duas para casa e cuidei com o meu melhor carinho. Ambas tiveram filhotes, os da Flor, não prosperaram, os da Chiquinha, vivem comigo até hoje. A Chiquinha partiu há alguns anos, em Atibaia, mas, essa é uma outra história, que talvez um dia eu conte aqui. Hoje, o centro é a Flor.
Ela era uma cachorrinha pequena, muito delicada, mas de personalidade forte. Eu tenho um cachorro que se chama Godzila, uma mistura de dogue alemão e labrador, o que resultou num corpo de mais de 50 quilos. Quando ele chegou, ainda bebê, ele era do tamanho dela e ela o adotou como seu filhote. Essa relação se estendeu pelos anos e, embora desse quase dez dela, ele sempre a respeitou, ela rosnava e ele abaixava o rabo, as orelhas e às vezes até se deitava. Eram como mãe e filho e brincavam muito, latiam e se mordiam de mentirinha, eram inseparáveis. Uma relação que, no mundo animal, não é comum ver nem mesmo entre as mães e suas crias adultas. Nem vou escrever sobre a reação dele quando a viu imóvel, porque foi triste demais.
A vida da Florzinha se gastou. Nos últimos três dias ela foi ficando apática, no domingo mal comeu, cambaleou um pouco, foi tendo cada vez mais dificuldade para respirar. Por incrível que possa parecer, embora estivesse em outra parte da casa, eu senti quando ela estava para ir embora, então, fui até ela, peguei-a no colo e fui falando com ela, agradecendo pelos anos maravilhosos, pela companhia, pelo amor, por tudo de bom que ela me deu. E, junto com as minhas lágrimas, foram saindo da garrafa as últimas gotas de sua preciosa vida, até que seu coraçãozinho parou de bater.
Trata-se apenas de uma cachorrinha e isso pode parecer exagero, mas, Deus, como doeu essa despedida, como foi difícil devolver ao legítimo dono esse vasilhame vazio! Eu tinha onze cachorros, ainda ficaram dez, mas, cada vida é única, por isso a sensação de vazio tão grande. Sei que minha dor é ínfima perto da de pessoas que precisam devolver seus pais, seus companheiros, seus irmãos, seus filhos. Mas, a verdade é que essa transição que chamamos morte dói demais e, por mais esperançosos e espiritualizados que nos julguemos, é muito difícil nos desfazermos das garrafas vazias, mesmo sabendo que o elixir que elas continham nos foi oferecido como uma dádiva e o degustamos e apreciamos durante anos e anos. Uma de minhas mais recentes alegrias foi ouvir o Papa Francisco afirmar que os cachorros vão para o céu, coisa que muitos religiosos discordam, afirmando que animais não têm alma e que, finda a vida do corpo, tudo se acaba. Independente do que o Papa Francisco acha, eu sempre acreditei que esses anjinhos de quatro patas vão para um lugar muito especial e, como já tive e ainda tenho muitos deles em minha companhia, creio verdadeiramente que, ao me despedir desta vida, quando a minha própria garrafa se esvaziar, é por eles que serei recebida em outra dimensão, mas, me aflige pensar que ainda tenho tantas garrafas a devolver…

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