Conta a história religiosa que, em meados do séc. III, havia um jovem chamado Reprobus que era muito forte e corajoso e tinha a determinação de servir o rei que fosse o mais poderoso que todos. Quando encontrou esse rei, nas terras de Canaã, passou a servi-lo com muita dedicação. Porém, dia percebeu que, sempre que ouvia uma canção cujo refrão falava no diabo, o rei se encolhia e fazia uma expressão amedrontada, persignando-se. O bravo guerreiro perguntou a ele qual era o motivo e ele disse que temia o diabo, pois acreditava que ele tinha o poder de lhe fazer mal. Decepcionado com aquele sinal de fraqueza do rei, Reprobus decidiu abandoná-lo e saiu pelo mundo procurando o diabo.
Andou, andou, procurou, procurou, até que o encontrou e acreditou que ele realmente fosse o mais forte de todos. Não ia muito com a cara dele, mas, resolveu servi-lo mesmo assim, afinal, ele era o mais poderoso. Começou a caminhar com ele e, vendo-se objeto de tamanha atenção, o tinhoso se pôs a contar todo tipo de vantagem e fazer pequenos truques com o intuito de impressionar o jovem. No entanto, mal começaram a caminhada e avistaram uma cruz a poucos metros de distância. Num ímpeto o diabo agarrou o braço de Reprobus e o arrastou para um desvio, fazendo-o andar muito mais do que andariam pelo outro caminho. Reprobus percebeu que seu companheiro sequer conseguia olhar na direção da cruz e perguntou o motivo disso e o diabo, então, respondeu que aquele era o símbolo do Rei dos reis e que quando o via ficava apavorado e fugia.
Mais uma decepção! Apesar da insistência para que não o abandonasse, Reprobus deixou para trás aquele falastrão que achou que pudesse ser o seu senhor e resolveu procurar alguém que lhe apresenta-se esse tal do Rei dos reis. Encontrou um velho eremita que o recebeu muito bem, o batizou e passou a iniciá-lo nos mistérios da fé cristã. Reprobus, porém, achava aquilo tudo muito enfadonho, não tinha paciência para ficar longas horas em oração e meditação e nenhuma disposição para fazer jejum e penitências. Sem contar que o tal do Rei dos reis, que o velho chamava de “Nosso Senhor Jesus Cristo”, não aparecia nunca. Ficavam rezando, rezando e nada. Um tanto quanto desiludido Reprobus resolveu fazer alguma coisa mais simples, encontrar alguma utilidade para a sua vida, diferente de servir aos poderosos. Como era um homem muito forte e estava instalado próximo de um rio caudaloso, cuja travessia necessária assustava as pessoas, resolveu se oferecer para ajudá-las a atravessar. Levava nos ombros ou no colo homens mulheres, velhos, crianças e até animais; nada pesava demais para ele. Era uma vida meio sem graça, mas, pelo menos se sentia útil e ganhava alguns trocados.
Certo dia quando já se preparava para descansar, apareceu um menino muito pequeno e lhe fez sinal que desejava atravessar o rio. Ele procurou com os olhos pelos pais do menino, mas ninguém o acompanhava. Perguntou se ele estava sozinho e ele confirmou. Perguntou se ele queria atravessar para a outra margem e mais uma vez ele confirmou com um sinal de cabeça. “Oras, esse menino deve ser mudo”, pensou Reprobus. Mas, já que a sua função era simplesmente auxiliar na travessia do rio, tomou o miúdo nas costas e sorriu, pensando: Esse é tão levinho que nem vou lhe cobrar nada, a travessia será rápida e tranquila.”
Porém, à medida que foi caminhando dentro d’água, foi começando a sentir um incômodo nos ombros, como se aquele garotinho tão franzino pesasse mais do que parecia. “Comeste muito hoje, hein, menino?”. Andou mais um pouco e água foi lhe chegando ao joelho. Continuou com a impressão de que o menino pesava quase como um adulto. “Devo estar mesmo cansado”, pensou, “também não é para menos, hoje comecei a labuta antes mesmo de o Sol nascer e agora ele já está se pondo! Andou mais um pouco dentro da água e sentia como se se arrastasse. A água já alcançava a altura da sua cintura. Neste momento da travessia, era comum que as pessoas sentissem medo, porque Reprobus começava a afundar cada vez mais, até que ficasse fora d’água só a sua cabeça e o corpo da pessoa que lhe ia aos ombros. O calado garotinho, porém, parecia divertir-se com aquilo. Reprobus olhou para o seu rosto e não encontrou nenhuma expressão de medo, pelo contrário, o menino sorria.
Reprobus foi encontrando cada vez mais dificuldade, sentia o corpo pender para um lado e para o outro. Agarrou os pés do garoto para evitar que ele caísse, ouviu um riso e se irritou um pouco. Mais alguns passos tentando abrir caminho com os braços pela água morna de fim de tarde e o peso aumentando, aumentando. Ele foi perdendo fôlego, começou a sentir vertigem e a sensação de estar carregando o mundo nas costas. Então exclamou: “Meu Deus! O que está acontecendo?” O garoto sorriu novamente e falou: “Até que enfim Reprobus! Achei que você não fosse me reconhecer!” “Quem és tu?”, perguntou, admirado. “Eu sou aquele que você procura há tanto tempo, meu filho, o Rei dos reis, o mais forte dos fortes. Eu sou o seu Senhor. Eu sou Jesus Cristo, Reprobus!
Bem, o fim da história é que Reprobus se tornou um cristão fervoroso, recebeu o nome de Cristóvão, que significa “aquele que carrega Cristo”. Tornou-se um mártir e foi decapitado. Passou a fazer milagres e se tornou um grande santo, conhecido e cultuado até os nossos dias como São Cristóvão, o protetor dos viajantes e dos motoristas.
Resolvi contar essa história hoje para falar de dois terríveis hábitos. Primeiro, o de servir a senhores errados, que parecem poderosos, mas, não são. São apenas exploradores, doidos para encontrar pessoas tolas o suficiente para bajulá-los e servi-los. E, segundo, costumamos carregar em nossas costas muito mais peso do que suportamos, geralmente o peso de problemas que não são nossos e que não nos compete resolver ou sequer nos envolvermos com eles. Podemos e devemos ser gentis, atenciosos e solidários com as pessoas, no entanto, cada um tem as suas questões, a suas responsabilidades e não nos cabe assumir para nós pesos que são dos outros.
Embora a história de São Cristóvão, real ou imaginária, seja muito bonita e interessante, nós não vamos carregar Jesus nas costas, por que ele jamais nos pesará, pois “seu jugo é suave o seu fardo é leve, e, além do mais, quem nos carrega é Ele. Mesmo quando somos religiosos, filantrópicos, engajados e dedicamos a vida a ajudar as pessoas, a rezar por elas, a aconselhá-las, se sentirmos peso é porque não estamos fazendo direito, estamos metendo a nossa colher na cumbuca alheia, nos envolvendo em assuntos que não são nossos e, pior, muitas vezes o fazemos por mera curiosidade ou por nos acharmos capacitados demais. Só que, enquanto estamos ocupados em salvar os outros, a nossa vida é um completo caos, pois quem cuida da vida dos outros não tem tempo de cuidar da sua.