Mulheres de Meia

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Raízes

 

Eu me lembro bem de quando surgiram os primeiros fios de cabelo branco na minha cabeça. Eu ainda era bastante jovem, tinha apenas 28 anos, e foi pela ocasião da morte da minha mãe. Tenho uma propensão genética ao embranquecimento do cabelo, por parte de pai e de mãe, mas, como muitos, também tenho a tendência a acreditar, empiricamente, que os sofrimentos têm o poder de nos tornar grisalhos precocemente. Vivi algumas situações suficientemente fortes para proporcionar tal mudança, se é que isto é realmente possível, mas, a maior parte dos meus cabelos embranqueceram sem que eu mesma percebesse, pois eles estavam recobertos por camadas de tinta. 
Assim como não tenho medo de morrer, também não o tenho de envelhecer e trazer os cabelos pintados era apenas um mero detalhe, mais para tê-los de uma cor diferente, avermelhada, do que para disfarçar a idade. Por isso, no ano passado eu resolvi cortá-los bem curtos para tirar toda a tinta e me surpreendi com o que vi, uma bonita cor prateada, como se a lua tivesse vindo morar na minha cabeça. Gostei. Gostei muito e não pretendo voltar a pintá-los. Primeiro porque não gosto de salões de beleza, segundo, porque manter os cabelos tingidos dá trabalho, requer dedicação, constantes retoques das raízes, cuidados para não ficar com várias tonalidades e eu sou uma pessoa prática, não gosto de perder tempo com esse tipo de cuidado. E, terceiro, porque descobri uma outra face minha, que estava escondida. Estou, inclusive, alterando a minha foto nesta coluna para que possam me ver com a minha aparência atual.
Nos últimos tempos, tenho feito umas viagens ao passado e hoje aconteceu mais uma delas, muito positiva.  Eu moro em uma casa feita de tijolos e de sonhos, uma casa pela qual todo mundo que a conhece se apaixona, mas, tenho pensado em vendê-la. Não tem feito muito sentido descer a montanha todos os dias para ir trabalhar em São Paulo e, de noitinha, subi-la novamente, fazendo todas aquelas curvas que as estradas das regiões montanhosas têm e me desviando dos incontáveis buracos, derrapando na beira de precipícios, assim como não faz sentido morar sozinha em uma casa tão grande. Na semana passada, vivendo um momento de profunda melancolia, escrevi para a minha querida amiga Natalina Collatrelli, a Taína, amiga de mais de quatro décadas, dizendo para ela que estava pensando em voltar para casa.
A resposta dela chegou hoje, terça-feira, e me deixou tão comovida que eu chorei de emoção e de gratidão por ter uma amiga assim tão querida. Ela me incentivou a voltar e disse que aí poderemos fazer muitas coisas juntas, como comer gostosos lanches e um bom churrasquinho, andar pelas serras, visitar Ibitirama, fazer goiabada juntas (no que ela é especialista, afinal, é uma Collatrelli, tem a genética do doce de goiaba nas veias!), passear, conversar, contar causos, e ainda me disse que, se eu adoecer, cuidará de mim e não me deixará faltar nada quando eu ficar velhinha. Então, sem precisar voltar, eu me senti em casa, senti que tenho raízes e como isso é reconfortante e bom!
Pode ser que seja mesmo viável vender a minha casa e ir para mais perto da civilização, sobretudo para um lugar onde eu tenho referências de vida, a cidade onde nasci, cresci, onde estudei, onde me tornei mãe, onde sonhei os mais lindos sonhos que hoje realizo, onde enterrei meus pais e meu irmão mais velho, onde moram as minhas melhores amigas, amigas da vida inteira, Taína, Janete e Vilma, o lugar onde passei metade da minha vida. Faltam menos de três anos para a minha aposentadoria e eu posso perfeitamente planejar uma mudança, um retorno à casa; e, se quiser ir mais depressa, posso até tentar uma transferência, já que a empresa para a qual trabalho tem agência em Monte Alto. Mas, há algo maior que isso, maior que voltar, que pensar sensatamente, organizando a última etapa da vida.
Esse algo maior é o pertencimento, é o amor, a amizade verdadeira, tão intensa e brilhante quanto a cor prateada dos meus cabelos, uma cor única, exclusiva, naturalmente minha. Uma cor conquistada e aperfeiçoada com o correr dos anos, a minha marca. Ainda que eu não vá, ainda que eu permaneça no meu refúgio nas montanhas, isolada com os meus cães, os meus personagens e os meus devaneios, ou que eu me mude para outro lugar por aqui mesmo, ainda assim, é muito bom saber que eu posso contar com a possibilidade de voltar para casa, é muito bom saber que essa casa se chama coração e que dentro dele eu sempre poderei ser eu mesma, com tinta no cabelo ou sem tinta no cabelo, com sorriso nos lábios ou lágrimas nos olhos. Muito obrigada, Taína, querida, por esse colo, por essa certeza do abrigo e da acolhida. Enquanto você estiver por aí, eu sempre saberei que tenho um lugar que é meu, um lugar para repousar. Eu sempre saberei que tenho raízes, que tenho um lar. 

 

Izilda Alves de Oliveira, nascida em Monte Alto, é formada em Letras pela USP, mora em Atibaia e trabalha no setor de habitação da Caixa Econômica Federal, em São Paulo. É escritora e assina seus livros como Isa Oliveira. E-mail: izilda.oliveira@usp.br

 

 

 

 

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