Mulheres de Meia

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Mamãe, Papai Noel existe?

 

Uso a palavra para compor meus silêncios. 
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos…
(Manoel de Barros (19/12/1916 – 13/11/2014)

 

Recebi por e-mail o poema que uso como epígrafe, do quase centenário poeta mato-grossense Manoel de Barros, que virou passarinho e foi voar pelas alamedas do céu na semana passada. Mandei-o a um monte altense que aos poucos tem se tornado querido ao meu coração, e ele me disse que o tinha lido na véspera, pois o texto tinha circulado nas redes sociais. Poderia ter escolhido outro, entre a riqueza literária que o simpático poeta nos legou, mas, optei por este, pois, quem o escolheu para divulgar na rede, escolheu muito bem, se é que é possível fazer uma escolha em obra tão vasta e tão rica. Mas, afinal, quem é Manoel de Barros? Alguém de quem muita gente, como o meu amigo, só ouviu falar no dia da sua morte? Certamente. Ele é um poeta conhecido de poucos, mas, quem tem o privilégio de conhecê-lo se apaixona irremissivelmente. 
Tive a graça de descobri-lo há alguns anos, ainda na faculdade e estudá-lo por um semestre, mas, para abarcar a grandeza e a singeleza de sua obra, seria preciso, no mínimo, uma vida inteira – e uma vida quase centenária, como a dele. Um poeta que escreveu três maravilhosos livros autobiográficos com o título de “Memórias inventadas”, separando a sua vida em três fases: Primeira Infância, Segunda Infância e Terceira Infância! Mais não há a falar sobre ele, correria o risco de tornar as minhas palavras “fatigadas de informar”. Só posso indicar que o leiam e que assistam ao fenomenal documentário “Só dez por cento é mentira” (disponível na Net), praticamente a única entrevista que ele concedeu em toda a sua vida e isso, como confessa, por dó do repórter que ficou meses na sua cidade, tentando fazer a matéria. 
Esta semana, além da ternura reavivada pela lembrança de meu poeta querido, outra coisa muito me comoveu. Uma colega de trabalho que tem um filho pequeno estava chateada porque o garotinho chegou em casa indignado porque um coleguinha na escola tinha contado pra ele que o Papai Noel não existe, que são os pais quem compram os presentes. É comum os filhos pequenos verem os pais como pessoas infalíveis, conhecedores de tudo e detentores da verdade absoluta. Uma certeza que vai se diluindo com o tempo, quando a falibilidade dos pais vai se tornando evidente nas pequenas coisas do dia a dia.  E a primeira “mentira” que os filhos descobrem nos pais é sobre o Papai Noel, no qual acreditam piamente nos primeiros anos de sua vida. 
Mas, pode haver coisa mais gostosa, lembrança mais agradável e feliz do que ajudar a mãe a montar a árvore de Natal, deixar os sapatinhos sob ela na véspera do dia 25 e encontrar ali os presentes deixados pelo bom velhinho? Mas, sempre há um espiritozinho de porco que descobre o “embuste” e faz questão de espalhar a notícia aos coleguinhas mais inocentes, causando neles uma enorme decepção. E então, como resolver o impasse? Insistir na fábula ou admitir ao filho que tudo não passa de uma invenção? Eu até dividiria a infância entre antes e depois da descoberta sobre o Papai Noel, quase que um rito de passagem, quando a criança adentra uma nova etapa de sua vida e inaugura um novo modo de ver as coisas e até mesmo de considerar tudo o que os seus pais dizem. Claro que, com a descoberta sobre o Papai Noel, logo vem também a descoberta sobre o coelhinho da Páscoa e que as marcas de patinhas deixadas pela casa foram feitas com farinha e três dedinho das patinhas dos próprios pais.
Hoje há pais mais racionais que preferem jogar de vez os filhos no gélido contexto da realidade e nem alimentar essa fantasia: Natal é comércio e pronto! Mas, graças a Deus, a maioria dos pais ainda é alimentada por suas boas memórias e não desmitifica de vez a crença no Papai Noel com suas renas e seu saco de presentes. Milhões de crianças no mundo todo ainda escrevem cartinhas para o Papai Noel e as colocam nos Correios. Logo isso deve acabar de vez, pois nossas crianças estão cada vez mais informatizadas. Creio que seja bom o Papai Noel comprar um I-Phone, se ainda não o tem, porque as cartinhas continuarão chegando, só que por e-mail, Facebook, WhatsApp…
Lembro-me bem quando chegou a minha vez de passar por essa saia justa. Meu filho, que acreditava absoluta e cegamente em mim, que não se conformava quando a uma pergunta sua eu respondia “Não sei, filho!”, pois estava certo de que eu sabia todas as coisas, chegou da rua esbaforido e me disse: “Mamãe, o Carlinhos falou que o Papai Noel não existe, que é o pai e a mãe da gente que compra os presentes e põe na árvore!” Ao fundo eu ouvi aquela música da trilha de Guerra nas Estrelas e pensei: “Meu Deus, e agora? Se digo que existe, para prolongar a sua inocência, passarei por mentirosa, se digo que não existe, passarei por mentirosa do mesmo jeito, pois até agora afirmei que existia!”. Então, a criatividade que só a ternura nos dá me apontou uma saída magistral e eu falei: “Filhinho, fecha os olhos, respira fundo, bem lá dentro do seu coração, o que você acha, ele existe ou não existe?”. Ele fez exatamente como indiquei, suspirou e me respondeu: “Eu acho que ele existe!”. Também suspirei aliviada e lhe disse: “Então ele existe e ninguém vai tirar isso de você!”. 
Graças a Deus eu tive mais sorte que meu filho e que muitas outras crianças, pois nenhum coleguinha estraga-prazeres veio me dizer que Papai Noel não existia e nem tão menos minha mãe me falou. Com certeza, a Manoel de Barros também não foi revelada tal atrocidade, por isso ele morreu acreditando e eu vivo a acreditar: Papai Noel existe, sim! E tanto creio que na minha casa até tenho uma lareira e uma simpática chaminé por onde ele pode entrar e renovar o meu estoque de sonhos a cada Natal a fim de que eu possa continuar, como Manoel, com meu “atraso de nascença e de crescença, aparelhada para gostar de passarinhos”.

 

Izilda Alves de Oliveira, nascida em Monte Alto, é formada em Letras pela USP, mora em Atibaia e trabalha no setor de habitação da Caixa Econômica Federal, em São Paulo. É escritora e assina seus livros como Isa Oliveira. E-mail: izilda.oliveira@usp.br

 

 

 

 

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