Semana 8
SEMANA 08 :
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RIO GRANDE DO SUL, 2000km pedalados e 4 kg perdidos!
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Chuva, frio, barro, barraca e um pouco de sujeira. Nessa última semana foi um pouco difícil se manter limpo, quente e seco. Barraca molhada, roupa úmida, bicicleta suja, banho de rio, frio na nuca, chuva e muita subida. Além disso tudo, alguns perrengues com a bike, problemas nas rodas, pneus e câmaras de ar, morros infinitos nas serras que atrasaram tudo, estrada de terra e pedra que impediram o rendimento da viagem, tudo que foi dando aquele tempero que a gente gosta. Quando tudo dá certo não tem tanta graça. É legal viver um tempinho assim, no perrengue, por que eu sei que em alguns dias eu chego na capital e ai tudo se ajeita. Dá pra tirar o atraso, dormir em cama macia, arrumar a bicicleta, lavar roupa, tomar banho em banheiro limpo, e o melhor é o valor que se dá pra tudo isso
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Desde que comecei a pedalar com o Deva, nada de quarto e colchão, só barraca. Depois que subimos a serra, o clima mudou totalmente, um frio que não dá pra acreditar, em pleno janeiro. Pedalar e acampar no frio é gostoso, mas quando chove o negocio muda um pouco. A barraca sempre acorda molhada por fora, por causa da chuva, e por dentro também, por que o calor do corpo, em contato com o frio externo faz com que a parede dela transpire no seu interior, como se fosse uma garrafa de água gelada, só que ao contrário. Mas é bom. Eu fico feliz por que sei que não vou morrer por isso, além de que, quanto menos coisas se tem, mais fácil de administrá-las. São só algumas roupas pra lavar, barraca pra secar, bicicleta pra arrumar e pronto, estou zero-bala novamente.
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Os dias de serra estão sendo sensacionais. Um mês e meio pedalando nas rodovias, junto com o barulho e a fumaça dos caminhões, e agora chegar aqui nesse silencio, é um alívio. Estamos passando por vilas que ficam completamente isoladas no meio da serra, longe de tudo, formadas por pessoas que sempre dizem: “Vocês são de São Paulo? Então sejam bem vindos ao paraíso, aqui mora a paz. Podem dormir com as bicicletas pra fora da barraca por que ninguém vai mexer”. E realmente, parece que a maldade passou e não gostou muito daqui não, vai ver que ela gosta de lugares mais movimentados e barulhentos.
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Depois de duas noites em Bom Jardim da Serra seguimos sentido São José dos Ausentes. Sabíamos que seria impossível chegar num dia só devido condições da estrada, que se resume a terra, pedra e morro, e com 30 kg de bagagem na bike, a coisa complica um pouco. Então, compramos comida pra cozinhar, coisas pro café da manhã e fomos, sem destino, sabendo que iriamos pedalar até achar algum lugar pra acampar, ou até aonde o corpo aguentasse. Passamos o dia todo na estrada e só conseguimos pedalar 45km, uma média de uns 7 km por hora, pouquíssimo. Atrasamos também por que foi nesse dia que começou o festival de problemas com as rodas. Já estávamos cansados quando minha câmara de ar explode mais uma vez. Descobrimos que o problema não teria cura se não trocássemos o pneu, que estava frouxo. Com o pneu frouxo, a câmara de ar faz pressão e pula pra fora, explodindo na hora que raspa no freio. O problema é que no meio da serra não tem nada, não tem cidade grande e muito menos bicicletaria, e é nessa hora que entra o papel da “gambiarra”: Com uma outra câmara de ar que já estava estragada, enrolamos a roda, como se a estivéssemos enfaixando. Assim, a roda fica mais firme e a câmara não escapa (na teoria). O problema é que assim, eu não poderia usar o freio dianteiro, mas tudo bem, vamos seguindo até onde der.
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Conseguimos pedalar mais um pouco, e finalmente chegamos num estado chamado Rio Grande do Sul, um estado que me traria muitas surpresas e um contraste cultural muito rico e forte. Paramos numa vila chamada Várzea, cheia da casas de madeira entre as montanhas da serra. Logo conhecemos a Salete, que estava lavando o quintal com a Nicole, sua sobrinha de 9 anos. Desenrolamos um papo, os dois em cima da bike do lado de fora da casa e ela com o rodinho na mão, secando o chão e falando algumas coisas sobre a vida, comparando a vida que eles levam com a vida que levamos na cidade grande, e no meio da conversa ela disse uma coisa que achei interessante: “Muita gente na capital, nasce, cresce, morre e não coloca o pé no chão”. Ali a vida é simples, não tem asfalto, todo mundo é obrigado a colocar o pé no chão. E ao contrário do que muita gente pensa, a felicidade mais pura mora nesses lugares. Uma felicidade de quem tem muito menos. Menos dinheiro pra administrar, roupa pra comprar, contas pra pagar, menos vaidade, menos inveja (afinal, todo mundo ali é igual é não há espaço pra inveja). O que mais me encanta com tudo isso é que as pessoas ali não se estressam e tem tempo de sobra pra conversar na rua, tirar leite da vaca, plantar, limpar a casa, dormir cedo e acordar cedo. Não quero dizer que não haja felicidade na cidade grande. Digo isso como um mero admirador, um admirador que cresceu cheio de ansiedades, frescuras e birrinhas, cheio de chiliques e estresses por motivos bestas. Por isso acho tão linda a maneira como essa gente vive, e é nelas que quero me inspirar, é com elas que eu quero ter contato e aprender muito durante essa viagem.
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Depois de uma conversa nesse sentido com a Salete, fomos convidados a entrar pra tomar um banho. Acho que ela conseguiu sentir o nosso cheiro azedo de longe e achou melhor cuidar dos meninos (Só um detalhe: como é bom tomar banho). Entre um banho e outro, fomos conversando e comendo ameixa, e mais ameixa, e pra terminar, mais ameixa, todas plantadas pelo seu vizinho de lado. Ameixa geladinha e doce, aquela que mata a fome e a sede ao mesmo tempo. Depois do banho, chega a hora de procurar um lugar pra dormir. Não deu nem tempo de procurar, saímos e já conhecemos o vizinho da frente, o Seu Bastião, que abriu as portas pra gente acampar e ainda convidou pra um café da tarde. No fim das contas não precisamos nem cozinhar o nosso macarrão, de tanta hospitalidade. Outra coisa que é difícil encontrar nessas vilas é a desconfiança. Quanto maior a cidade maior é a desconfiança das pessoas e a dificuldade de conseguir lugar pra ficar.
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Acordamos cedo naquela vilinha tomada pela serração (neblina). Tudo branco e úmido, só o topo das montanhas ficava descoberto. Dona Cleide, esposa do Seu Bastião estava do lado da barraca tirando leite da vaca e já nos chamou para o café. Leite fresquinho, ainda cheio de espuma, torradas doces e mais emoção. Eu me emociono com a pureza dessas pessoas, o jeito simples e errado de falar, de perguntar, de olhar, de oferecer comida, é muito lindo. Ficamos ali mais um pouco, conversamos, agradecemos muito a toda a família e a Deus, por mais um abrigo cheio de bondade e simplicidade, mais um pra coleção de ensinamentos. Muito obrigado Seu Bastião, Dona Cleide, sua filha Jucemara, seus netos, Kevin, Jairo e Fernanda. Muito obrigado Salete e Nicole pelo banho e pelas ameixas, e obrigado ao Senhor, Paizão Queridão, por continuar colocando pessoas tão boas em nosso caminho.
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Seguimos em silêncio, refletindo. Uma subida escabrosa pra começar o dia e lá estamos nós, fedidos novamente. Pedalamos uns 10km, eu sem freio dianteiro, com a roda toda enfaixada, tudo errado. É claro que não deu certo. Mais uma vez o pneu furou, paramos e desistimos. Seria impossível pedalar 50km naquelas condições. Paramos no meio daquela estradinha de terra, sem uma alma viva, tomamos uma vitamina, comemos uma maça e esperamos alguma coisa acontecer. Não demorou muito e até passar uma caminhonete. Era o seu Adão, andando pela serra e levando seus produtos pra vender nas vilas. Colocamos as duas magrelinhas na carroceria, nos enfiamos no meio dos salames e abóboras e cochilamos (não sei o que me deu na cabeça que eu inventei de tomar aquele maldito remédio pra tosse na hora que eu acordei e quase desmaiei de sono mais uma vez). Cochilamos na carroceria de uma caminhonete, numa estrada de terra cheia de pedra e buraco, parece mentira.
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Fomos despachados em São José dos Ausentes. Mais uma vila sem bicicletaria. Passamos o dia no único posto de gasolina da cidade, meio que sem saber o que fazer, deixando o tempo tomar alguma atitude. Almoçamos, cochilamos sobre a mesa, acordamos, remendamos o pneu com aquela gambiarra suja mais uma vez, pensamos em seguir daquele jeito mesmo, desistimos, pensamos em acampar na igreja, desistimos. Até que finalmente o tempo agiu e o nosso anjo apareceu, o Gelson, um borracheiro que tinha uma bicicleta parada e tirou o pneu dela pra vender pra gente. Além do pneu, disse que se seguíssemos 15km chegaríamos num lugar lindo de se acampar. Já era final de tarde e resolvemos pedalar assim mesmo. Fomos nos embrenhando no meio da serra e achamos finalmente o lugar, uma floresta de pinheiros, a beira de um rio calmo, uma paisagem parecida com aquelas Canadenses. Armamos a barraca ali, tomamos um banho naquele rio fantástico, fizemos uma sopa, uma fogueira e capotamos junto com a chegada da chuva. Acordamos com todas as coisas geladas e molhadas, que ótimo. Guardamos tudo de qualquer jeito e seguimos.
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Essa manhã gelada de pedal foi inesquecível. Eu pedalei chorando, mas dessa vez o choro era de tanto rir. Quase morri com as histórias que o Deva foi me contando da “Turma do Atum”, o nome da sua turma na época do colégio e faculdade. Famosos em Araraquara pelo tanto de loucuras e besteiras que faziam pelas ruas e bailes da cidade. Uma turma de malucos inteligentes que usavam a criatividade pra divertir a cidade. Sempre fantasiados, fazendo coisas que até Deus duvida, mas sempre com uma boa saúde no humor. Cheguei a perder o ar em cima da bike com algumas histórias bizarras.
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Deveríamos chegar nesse dia a Cambará do Sul, uma cidadezinha cercada por cânions (o que não falta nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul), mas quem disse que seria fácil? Até seria se o “festival de problemas nas rodas” tivesse cessado. Começou com o pneu do Deva que furou 4 vezes, mas até ai tudo bem, é só remendar e seguir, mas o problema maior aconteceu novamente com minha roda traseira, que não aguentou a quantidade de pedras e buracos da estrada. Os raios começaram a estourar, um por um, até que minha Princesa ficou parecendo um João Bobo, de tão bamba. Pronto, agora não tem mais jeito, precisamos de uma boa bicicletaria pra trocar o aro, se não, sem chances de seguir. Faltavam 14km pra chegar e paramos novamente na estrada de terra, até que passou um guincho (creio que muitos carros e caminhões quebrem naquelas estradas horríveis) e nos levou até Cambará.
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Na cidade havia apenas um mecânico de bicicletas, que alegou ser impossível pra ele arrumar aquilo. As peças que ele tinha ali não eram compatíveis com as que eu precisava. Até daria pra fazer uma gambiarra, mas daria um trabalho arretado e ele preferiu se esquivar do problema. Voltamos pro guincho, que nos deixou no centrinho. Conhecemos duas moças que nos indicaram um camping baratinho. Ficava há uns 2km do centro, e foi lá que passamos o final de semana, com a bike quebrada, esperando segunda-feira chegar, assim, poderíamos pegar um ônibus até São Francisco de Paula, a única cidade que teria estrutura pra arrumar a Princesa. O camping era numa fazenda cheia de araucárias, lagoas e montanhas. O despertador se resumia ao grito das ovelhas e dos corucácas (um pássaro típico da região). Aproveitamos o final de semana na cidade pra conhecer os cânions. Primeiro dia, pegamos um ônibus só de ida até o cânion Itaimbezinho, pra voltar, só de carona, mas fomos na Fé, é claro que o anjo da guarda iria aparecer.
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Não demorou muito e lá estava o casal Ari e Vivian, os nossos anjos do final de semana. Conhecemos eles no meio da trilha e ficamos juntos até domingo a noite. Passamos o sábado no Itambezinho e combinamos o Cânion Fortaleza pro domingo. O Ari tem a idade do meu pai, nasceu em 1960 e conhece mais de 50 países. Surfa, veleja, viaja, trabalha, pedala e tem um espirito de 20 e poucos anos. A Vivian é a mesma coisa. Cabeça de moleca, que acompanha o Ari há 4 anos em suas viagens pelo mundo. Os dois dias com eles se resumiram a trilhas, penhascos, piqueniques e histórias da vida. Foi um prazer muito grande conhecer vocês, principalmente pela lição, de que o envelhecimento está dentro da nossa cabeça. O corpo padece mas a cabeça pode se manter jovem pra sempre.
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Eu sempre soube que a cultura daqui é muito forte, tradicionalista, cheia de costumes. Mas ver isso com os próprios olhos é outra coisa. Os homens realmente usam aquelas roupas, com a bota por cima das calças, chapéu, lenço no pescoço e camisa de manga comprida. E não é só nos bailes, rodeios ou nas fazendas, é em todo lugar. E o chimarrão? Eles tomam toda hora, em todo lugar, faça frio ou calor de 40 graus, lá estão eles com a garrafa térmica e a cuia. Nesse sábado podemos ver isso mais de perto. Fomos conhecer o rodeio e o baile da cidade. Campeonato de laçada no rodeio e muita dança no baile. Confesso que me emocionei quando chegamos no salão. Eu e o Deva ficamos quase que sem conversar a noite toda, só apreciando aquela festa, que parecia estar acontecendo em outro país. Não pude acreditar quando eu vi todas as mulheres vestidas a caráter, com vestidos coloridos como se fossem princesas, que na verdade são chamadas de “prendas”. Os homens com as roupas de “peão” e as mulheres de “prenda”, coisa mais linda. Crianças, jovens, adultos e idosos, todo mundo presente e bem vestido. Na pista, as centenas de casais dançavam o fandango, e, num passo sincronizado, todos iam girando devagar em volta do salão, preocupados, então, com a dança particular do casal e com a sincronia do circulo. Confesso que até escorreram algumas lágrimas.
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De volta a estrada, seguimos viagem na segunda bem cedo. Fomos obrigados a fazer um buraco de 70km no roteiro, não teve como evitar o ônibus até São Francisco de Paula. Chegamos cedo e fomos atrás das bicicletarias da cidade. Nenhuma das 3 tinha o aro que eu precisava, mas por sorte, o dono da loja era gente boa e foi até a cidade vizinha buscar o aro certo. Passamos o dia todo pra rua, esperando a Princesa ficar pronta. Comemos, cochilamos no banco da praça, fomos ao banco, até que as 17h ela recebeu alta e saiu da internação. De volta ao pedal depois de 3 dias de descanso, pedalamos até Canela, uma cidade turística, linda e com arquitetura alemã. Agora estamos aqui tirando o atraso do sono, dormindo numa pousada bem gostosa, com chuveiro particular e quente! UFA. Amanhã seguiremos até São Leopoldo, que fica a 30km de Porto Alegre, onde vamos encontrar o querido Rodolfo Smirne, um antigo amigo que está morando lá e já abriu as portas da sua casa pra gente passar 2 noites. De lá, seguimos para a capital, onde vamos encontrar o também querido Bruno Góes, amigo tão antigo quanto o Rodolfo. De lá o Deva pega o avião de volta pra casa e eu sigo viagem sozinho novamente…
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Gente, eu acho que é isso que eu tenho pra contar sobre essa semana. Os diários estão ficando cada vez maiores né? Estou perdendo o freio e quando eu começo a escrever eu revivo tudo o que aconteceu na semana. Isso é tão bom que não consigo parar. As vezes não lemos um texto por que achamos ele muito extenso e sempre temos alguma coisa mais importante pra fazer, eu sou assim. Mas vamos tentar fazer como as pessoas que moram nas vilas pequenas e isoladas, que tem tempo de sobra pra fazer o que nos dá prazer. É difícil, mas se a gente se organizar, dá tempo.
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Uma semana maravilhosa a todos, fiquem com o Paizão, por que ele é gente boa demais!
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Um beijo grande e um abraço apertado cheio de saudades!