Semana 11
SEMANA 11:
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Estou escrevendo direto daquela “tripinha” que fica no extremo sul do Brasil, mais precisamente em Mostardas, cidade litorânea, entre o mar e a Lagoa dos Patos. Aqui é o paraíso e o pavor do ciclista, o que difere é a posição do vento. Estradas retas e planas, paisagens constantes, gados, ovelhas e um movimento esporádico de automóveis. Se o vento te levar, você é rei, caso contrário, nem adianta se estressar ou ter pressa, o negócio é relaxar.
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Antes de sair de Imbé, passei 3 noites em Passo Fundo visitando os meus Anjos do Sul. Peguei um ônibus até lá e depois voltei pro litoral pra reencontrar a princesa.Hoje, eu posso dizer que tenho irmãos aqui nesse estado. Irmãos mesmo, assim como estes que eu tenho em Araraquara, Maringá. A diferença é que precisei de apenas 7 dias pra ter certeza disso. Existem pessoas que parecem já estar te esperando, e sempre com novas maneiras de ver a vida, sempre agregando valor à nossa forma de pensar. Foi isso que senti com essas pessoas, vi uma nova maneira de se relacionar, de se divertir. É realmente muito bom saber que eu faço parte dessa alegria e posso voltar pra cá quando eu quiser.
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De volta ao litoral, fiz mais visitas à Dona Aurora, que me deixou completamente apaixonado. Que senhorinha maravilhosa, corajosa, guerreira, sonhadora. Não pude acreditar nas histórias que ela me contou dos anos que passou na estrada com a sua magrela, a Serena. Hoje, quando eu conto pra pessoas de mais idade sobre a minha viagem, é claro que a reação é de espanto. Com a Dona Aurora é o contrario, eu é que fico espantado em ouvir as histórias dela. Ela não tem medo não. Durante a viagem, entrava no meio do mato, acampava, fazia trilha, tudo sozinha, coisa que muito marmanjo não encara. Em vários momentos molhei meus olhos, em ver a emoção que ela coloca nas historias, e com toda razão, nada mais admirável, eu pelo menos nunca havia visto nada igual.
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A minha última noite em Imbé eu dormi na casa dela, acordei um pouco tarde depois de uma noite recheada de pernilongos (8h40) e sai pedalando sentido sul, sem saber até onde eu iria. Quatro quarteirões depois ela me liga, dizendo que esqueci as garrafinhas d’água, voltei, dei mais um abraço na musa, ganhei mais uma benção e finalmente segui. Nas primeiras 3 horas de viagem fui conversando. Trocando grandes ideias com o meu Paizão Querido, sobre tudo, tudo mesmo. Conversamos sobre todas as pessoas que apareceram na minha vida nos últimos 77 dias, sobre os amigos de Passo Fundo, pedi força à minha Avó que está com alguns probleminhas de saúde, pela qual eu dediquei um bom tempo da conversa, rezei também por alguns amigos que estão passando por momentos difíceis, agradeci pela alegria e sucesso de outros, pelo emprego da minha prima Carla, pela saúde que hoje eu tenho pra realizar essa viagem, enfim, por todos os meus amigos, familiares e principalmente pela força do bem, pela união das pessoas do bem, pra que cada dia mais elas se aproximem, mesmo que distantes fisicamente.
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Depois de uma manhã de bate-papo, com direito a respostas imediatas, parei pra um almoço. Bastante carboidrato pra renovar as energias e pé na estrada. Fui pedalando, sem pensar no destino. Peguei uns 20 km de estrada de terra, o rendimento caiu, mas eu estava sem pressa pra nada. Cinco ameixas numa quitanda e finalmente cheguei em Frei Sebastião, uma vila de 1000 habitantes perto do nada, quase chegando no lugar nenhum. Parei no mercado pra comprar minha janta e aproveitei pra descolar um cantinho. Me disseram que eu deveria procurar o Seu Alemão, e foi pra lá que eu fui. Cheguei e fui muito bem recebido, sem cerimônia ele me liberou o banheiro que fica do lado de fora da casa, me convidou pra um café e disse que eu poderia acampar em qualquer lugar ali ao redor da casa (As casas nessas vilas normalmente não tem portão). Armei a barraca entre a casa dele e a rodovia, em baixo de um poste de luz, pra facilitar a minha organização gastronômica. Macarrão ao molho branco com sardinha, preparado com plateia e tudo. O Seu Alemão e mais um caminhoneiro gente fina, que também estava dormindo lá, ficaram abismados com esse meu novo estilo de vida e curiosíssimos com a minha bagagem. Ficaram ali, de pé, o tempo todo, olhando para mim enquanto eu me atrapalhava com a cebola, o alho e o tempo do macarrão. Foram perguntando sobre tudo, desde o fogareiro até a maneira como eu faço pra lavar roupa, dormir, etc. E eu fui respondendo, com o maior prazer, feliz por gerar curiosidade e reflexão nas pessoas.
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As 5 da manhã acordei, arrumei tudo e fui tomar um café dentro da casa do Alemão. Papo vai papo vem, descobri que ele é o prefeito de Frei Sebastião e de mais uma vila vizinha. Disse que é seu quarto mandato, que não consegue sair da política por que os moradores não deixam. Que beleza, um prefeito tão querido. Muito obrigado seu prefeito, o senhor realmente é uma pessoa boa e com certeza ganharia meu voto se eu fosse um morador. Ganhei dele também muitas palavras de Fé, vi que não foi apenas um “Fica com Deus”, foi algo mais verdadeiro, vindo lá de dentro. Respondi à mesma altura e parti, dessa vez, com rumo a Mostardas.
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De manhãzinha, ao contrario do que eu imaginava, ventava muito, e o pior, no peito. Sai com o céu bem nublado, aquele clima “xoxo”, estrada vazia, tudo reto, poucas casas, muito gado. Confesso que foi a primeira vez em que eu senti um nó meio chato na garganta. Hoje foi o primeiro dia, de muitos, em que estarei realmente sozinho, sem amigos me esperando nas próximas cidades. Até então estava tudo muito fácil. Amigos pra todo lado, o Deva pedalando comigo, tranquilo. Mas agora é que a viagem realmente começa, é agora que eu vou sentir a água bater na bunda. Nada que não fosse esperado, eu já sabia disso, e pra falar a verdade, eu não via a hora dessa sensação chegar. Agora eu fico sozinho, refletindo o dia todo, sentindo alguns medos, lutando contra eles, quem sabe eu consiga ler mais, meditar. Usar essa “solidão” pra conhecer novas possibilidades que existem aqui dentro, essa é a meta. De qualquer forma, como me ensinou o meu grande parceiro de viagem, Guto: “Quando se está sozinho, se está com todo mundo”.
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Então eu segui e fui me animando, pensando que eu ainda tenho mais de 2 anos pela frente e o que importa é o dia de hoje. Voltei a pensar na Vó, nos amigos, na família, no carnaval, em Passo Fundo, e tudo isso foi me animando. E ai, quando começamos a animar, as coisas começam a acontecer (Isso é fato, já conclui que desânimo gera desânimo, pressa gera furos no pneu, e por ai vai). Pra começar a sessão “Gente Boa no Caminho”, parei numa cabana beira de estrada, comi um amendoim, tomei um suco e fiquei conversando com o Seu Celeste Terra, um senhor lindo, que me falou muito da vida, de Deus, do mundo, e no final, não deixou eu pagar a conta. Sai de lá sorrindo igual criança. Já estava cantando novamente, olhando pro nada, com a cabeça lá nas nuvens, quando vejo um ponto no horizonte, se aproximando. É muito fácil perceber um viajante chegando, a garupa toda cheia de trambolhos entrega na hora. Mas dessa vez tinha alguma coisa estranha. Era o Everton, um gaúcho de Porto Alegre, figura rara, chegando com uma bike reclinada. Essa bike é uma coisa louca, as pernas e os braços ficam pro alto e a bunda lá em baixo, como sentar numa poltrona e colocar os pés na cadeira. Nunca tinha visto alguém viajando assim. Fiquei admirado e espantado quando ele me disse que consegue pedalar mais de 200km por dia. Quem sabe na próxima?
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No momento em que a gente estava se despedindo, incrivelmente, mais uma bike recheada de bagagem passa pela estrada. Gritamos mas ele não quis parar. Na hora percebi que não era brasileiro. Como ele estava no mesmo sentido que eu, segui viagem e acabei o encontrando mais pra frente. Era o Horst, um alemão de uns 50 e poucos anos, que está há 7 semanas na estrada e ainda tem mais 2 anos pela frente. (Foi tudo o que consegui absorver de informação, ele não falava português, nem espanhol, eu não falo muito bem inglês, nem ele, e ai ficamos naquele enbromeixon sem vergonha). Tiramos uma foto e seguimos, ele lá na frente e eu tranquilo, bem pra trás. Faltando 30 km pra chegar em Mostardas, resolvi pedir água numa chácara beira de estrada, minhas garrafas nem estavam tão vazias, mas sem mais nem menos, resolvi parar. Uma mulher me atendeu com um sorriso:
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– Moça, pode me arrumar água, por favor?
– Mas é claro.
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E voltou pra casa, que ficava uns 150 metros pra dentro da porteira com as garrafinhas na mão. Quando ela voltou, eu peguei as garrafinhas e agradeci:
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– Muito obrigado, tenha um bom dia!
– Tchau menino, boa viagem!
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Continuei ali, na porteira, retirando as formigas que me atacaram enquanto eu cochilava (sim, eu cochilei em 3 minutos esperando a água chegar). Então, ela apareceu novamente:
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-Moço, você disse “Bom dia” (Já eram 13h30), você ainda não almoçou?
-Ainda não moça (Senti uma alegria por dentro, já sabendo o que iria acontecer).
– Quer comer? Tem carne, pão…
– Ah moça, eu não costumo negar essas coisas!
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E lá estou eu, com meu almoço garantido. Um pote de manteiga cheio de carne, um saco com 5 pães e uma garrafinha de refrigerante. Que alegria. Além da comida, ela disse também que na vida a gente recebe o que a gente dá. Disse que não foi à toa que eu parei ali pra pedir água, eu parei por que eu deveria parar, por que algo mais forte me colocou ali. Ela também me contou que essa é a maneira que ela tem de proteger a família dela, ajudando os outros com pequenas atitudes como essa. Eu respondi dizendo que iria rezar por ela e por toda a sua família, que segundo ela, passa por algumas dificuldades. Aquilo foi enchendo meu olho de lágrima, pra variar, e na hora de dizer tchau, quase que as palavras não saíram, ficaram presas no nó que me deu na garganta. Foi ela virar de costas e eu desabei… Naquele momento eu não consegui, e nem quis, segurar o choro. Aproveitei a emoção e rezei por eles, como eu havia prometido. Muito obrigado Leoni Maria, pelo almoço e pela bondade!
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Que coisa boa. Eu não sei como eu faria essa viagem sem essa Fé, que me aproxima de tanta gente maravilhosa. Mas ainda não acabou. Chegando em Mostardas, bem cansado, parei pra pedir informação pras primeiras pessoas que encontrei, que estavam fazendo uma reforma num posto de gasolina. Logo conheci o Jader, que se encantou com a viagem e ligou pro primo dele, o Gilvan, que liberou o camping dele pra eu ficar. Um lugar super gostoso, uma casinha de madeira, com geladeira, fogão e até internet! Joguei meu isolante térmico no chão e nem precisei armar a barraca. Uma chuvinha inspiradora está caindo nesse momento, estou escrevendo no escuro, concentrado apenas em todas as coisas boas que acabei de escrever!
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Que tudo continue caminhando dessa maneira, e se houverem problemas, que sejam apenas degraus pra continuar subindo, subindo, subindo…
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Boa semana a todos!
Um beijo grande, com muito carinho!
Beto!