Quando eu tinha seis anos, ganhei o meu primeiro livro, a história ilustrada de um ursinho que compra uma cadeira de balanço, mas vem um bicho mais pesado, senta na cadeirinha dele e a quebra. Eu fiquei tão enternecida com essa história que até chorei.
Tínhamos também uma porção de livrinhos bem velhos de literatura de cordel – que conservo comigo até hoje – e minha mãe, mesmo semianalfabeta, com muita dificuldade, lia para mim. Eu me encantava com aquilo. (O livro do ursinho, infelizmente emprestei para uma menina que se mudou de Monte Alto e nunca mais me devolveu…).
Ao entrar na escola, aprendi a ler e um novo mundo se encheu de encantos. Eu lia de tudo, até bula de remédio e os livros de contabilidade do meu irmão, que estudava na Escola de Comércio. Eu achava fascinante que houvesse pessoas que inventavam histórias tão bonitas e interessantes, que me levavam a viajar por lugares tão distantes e realidades tão diferentes da minha.
Então, a magia se completou: eu aprendi a escrever e percebi que tinha nascido com o dom de contar histórias e, a partir daí, comecei a escrever em todos os papéis que achava. Infelizmente, sobrou um desses escritos, os outros se perderam por aí.
Um novo mundo se descortinou diante de mim e eu compreendi que era isso que eu queria ser na vida: escritora. Porém, a coisa não é tão simples. Escrever é fácil, publicar já é mais difícil e, conseguir que as pessoas se interessem em ler as suas histórias, sem ser famoso e conhecido por origem, berço ou qualquer outro motivo, também é um desafio.
Engravidei aos 18 anos, justamente na época em que tinha começado a escrever para o Imparcial e estava procurando uma editora para o meu primeiro livro, de poesias, “Tatuagem” (que não publiquei até hoje).
Então, precisei fazer uma escolha: ou continuar sonhando com a carreira literária ou arrumar um emprego concreto para poder criar o meu filho de pai ausente (quando a criança não cresce na barriga da gente, é mais fácil achar que o problema não é nosso…). Tive um apoio enorme do Romeu e da Marlene, que eram os proprietários do jornal e, de uma hora para outra, estava trabalhando como repórter do Imparcial.
Foram anos nessa labuta: repórter, redatora, editora. O salário, porém, não favorecia muito e precisei arrumar outros empregos para complementar. Trabalhei ao mesmo tempo no Imparcial, no jornal A União, de Santa Adélia, para onde viajava todos os fins de semana, e no jornal da Diocese de Jaboticabal. Então, percebi que não estava conseguindo ter tempo para ficar com o meu filho, pois todas as minhas horas eram ocupadas com trabalho.
Prestei concurso para a Nossa Caixa – que nem existe mais – e passei. Fiquei apenas com o banco e o Imparcial, até que resolvi partir. Trabalhei dois anos no Estadão, tempo suficiente para me desencantar do jornalismo. Eu era uma escritora, não uma repórter. O repórter relata os acontecimentos, o escritor os inventa. Essa era a minha praia.
Do Estadão, fui para o Metrô; do Metrô, para a Caixa. Lancei dois livros nesse período, sempre acalentando o sonho do dia em que poderia viver apenas para a literatura. Os anos se passaram, o filho cresceu, seguiu o seu caminho, deixou de depender de mim, e a aposentadoria chegou. Era, enfim, o meu momento.
Mas, aí, aconteceu o fenômeno da revolução digital. E, quando eu, finalmente, estava madura e preparada para escrever e viver exclusivamente para a tão sonhada e amada literatura, descobri que, para fazer com que as pessoas se interessassem em ler os meus livros, precisaria ter uma presença digital forte…
Abre uma conta no Instagram. Abrir a conta não basta, tem de publicar com frequência. E precisa curtir o que outras pessoas publicam, entrar em outras páginas, se relacionar, que é para sensibilizar o algoritmo e conseguir seguidores. Mas, tem que tomar cuidado com o que escreve para evitar os haters e não ser cancelada. Precisa fazer vídeos, porque as pessoas não gostam de textos, ainda mais textos longos.
Ah, agora precisa ir para o Tik-Tok – esse território de ninguém onde se vê o que até Deus duvida. Já tem uma conta no Twiter? Ah, não, agora não é mais Twiter, é X, mas, precisa aparecer por lá. Tem que aumentar a presença digital, melhorar a qualidade dos vídeos, usar maquiagem, melhorar a iluminação, fazer cursos. Agora o algoritmo mudou, precisa se atualizar.
Para! E eu vou escrever quando? De que adianta as pessoas me conhecerem se não escrevo? Ah, então escreve, mas, segue a tendência do momento, vai na linha do que está bombando: literatura hot (uma mistura de Júlia, Sabrina e pornografia para mulheres), não vou escrever isso! Então, escreve suspense. Suspense não, terror! Pega a onda do Halloween, isso vende muito. Histórias de vampiros também, sempre estão em voga. Mistura história policial com zumbi, vai bombar. E tenha pelo menos 20% de personagens LGBTQIA+. E não enfia valores morais na literatura que isso não agrada, e nem pense em escrever sobre religião. Literatura laica. Bem, se for alguma história das religiões afro, vai bem.
Com uma tremenda dor no coração, me senti completamente identificada com o Fernando Pessoa. Comprei um grande baú e dentro dele guardarei todos os meus escritos, porque vou escrever sobre o que eu quiser, sobre o que me der vontade, sem tendências, modinhas, ideologias e temas do momento. E vou deixar lá, porque, assim como aconteceu com Pessoa, quem sabe algum dia alguém encontre o baú? Mesmo sendo um dos maiores escritores que pisou nesse planeta, ele não conseguiu publicar nenhum livro em vida, nem dele nem de seus heterônimos, (exceto cem exemplares como prêmio de consolação em um concurso literário que ele não venceu, com o livro Mensagem).
No fim, acho que essa foi a minha melhor decisão dos últimos tempos: há dois meses, comecei a construir a minha ausência digital. Afinal, ninguém precisa saber para onde viajo, que flores crescem no meu jardim, qual é o comportamento dos meus cães, e o que eu comi no café da manhã. Minha vida é real e é sobre essa vida real e maravilhosa que continuarei escrevendo, mesmo que não publique, mesmo que ninguém leia. Não serei eu quem estará perdendo, pois a literatura está em mim como uma segunda respiração. Perderá quem não puder chegar a ela apenas porque eu me recusei a me mudar para o mundo virtual.