“Já passei da idade de estudar” e “não tenho como arcar com o custo de um curso superior” são duas pedras que podem estar no caminho de quem passou dos 40 anos sem ter concluído o Ensino Médio ou uma faculdade. Mas essas pedras são imaginárias. Nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e Faculdades de Tecnologia do Estado (Fatecs) a idade dos alunos chega, facilmente, à faixa dos 70 anos.
No primeiro semestre de 2023, de acordo com o Relatório Socioeconômico elaborado pela Fundação de Apoio à Tecnologia (FAT), estudantes com idade a partir de 41 anos correspondiam a 14,35% do total de matriculados nas Etecs. Não são raros os casos de pais que se sentam nos bancos escolares ao lado dos filhos. Além disso, ainda é surpresa para muita gente o fato de que nas Etecs e Fatecs o ensino é totalmente gratuito. Contamos, a seguir, a história de cinco estudantes que retomaram os estudos depois dos 40 e ganharam uma nova perspectiva profissional e também pessoal, a partir do ingresso nos cursos técnicos e tecnológicos oferecidos pelo Centro Paula Souza (CPS) em todo o Estado.
Mudança de cenário
Em 2021, durante a pandemia de Covid-19, Maria Cristina da Silva, então com 55 anos, chegava a passar mais de três horas na internet, especialmente no Facebook. Um dia, caiu a ficha. “Com esse tempo eu poderia fazer uma faculdade”, pensou. O exemplo estava dentro de casa: a filha Ana Carolina, na época com 18 anos, estava matriculada no curso superior tecnológico de Sistemas Biomédicos na Fatec Osasco – Hirant Sanazar, desde o ano anterior.
Maria Cristina não fica atrás da filha no quesito esforço. Ao prestar Vestibular, conquistou uma vaga em Gestão de Turismo na Fatec São Paulo. “Era o curso mais próximo da área de humanas”, lembra.
Graduada em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) nos anos 1990, ela descobriu o universo de possibilidades que a nova profissão colocaria ao seu alcance, como as várias modalidades de turismo, da incursão em áreas naturais ao auxílio em compras. “Eu, que sempre imaginava viagens internacionais, percebi que você pode fazer turismo na própria cidade”, conta.
Outra novidade: hoje ela convive com muitos colegas também afrodescendentes. “Na minha primeira graduação, entre 80 alunos, éramos três afrodescendentes.” Ao concorrer a uma vaga na Fatec, Maria Cristina recebeu pontuação acrescida por ser afrodescendente e oriunda de escola pública. Depois de tantos anos, o cenário era finalmente novo, mais diverso e mais aberto a pessoas de todos os estratos sociais.
Três em um
Foi também na fase da pandemia, em julho de 2020, que Rosana Ruiz Santos, de 54 anos, tentou uma vaga na Fatec Carapicuíba, ao lado das filhas Harumi, de 26 anos, e Tiemy, de 30. A caçula foi a única a entrar nessa seleção e já concluiu o curso superior de tecnologia em Secretariado, o mesmo eleito pela mãe e pela irmã. Na época, o histórico escolar era o documento usado para ingresso no CPS – a pandemia havia obrigado a suspensão do Vestibular.
Rosana e Tiemy entraram a seguir, no início de 2021, e estarão juntas no sexto e último semestre, que começa em agosto.
Quando se casou, Rosana trancou matrícula na faculdade de Letras, mas sentia falta de ter uma escola para chamar de sua. Em 2015, depois de 26 anos sem estudar, passou no Vestibulinho para o curso técnico em Administração na Etec Carapicuíba. Terminar o curso só fez aumentar o seu gosto pelos estudos. “Entrei na Fatec para me reciclar, melhorar o meu currículo. Sempre quis ser secretária executiva.”
O temor de Rosana, que hoje desempenha uma função técnico-administrativa, estava em matérias como matemática financeira, gestão financeira e contabilidade. “Nunca fui boa na área de ciências exatas, mas os professores tornaram as aulas fáceis de assimilar.” As filhas também fizeram sua parte, ajudando no que podiam. “Tem sido um período precioso”, diz. “Não pretendo parar por aqui.”
Difícil, mas não impossível
“Eu me casei muito cedo, aos 20 anos. Queria estudar, mas o dia a dia me puxava para outro lado. Só com os dois filhos já formados pude voltar à escola”, conta Oscar Bergamo Junior, de 58 anos, que havia interrompido os estudos no primeiro ano do colegial (hoje Ensino Médio).
Oscar se casou na década de 1980 e em 2019 prestou o Vestibulinho para o Ensino Médio Integrado ao Técnico em Eletrônica na Etec Julio de Mesquita, em Santo André. “Estudei muito, muito mesmo. Sabia que o Vestibulinho era puxado.” O resultado foi um honroso 12º lugar na classificação do processo seletivo.
Seu empenho durante o curso também rendeu frutos, lhe garantindo uma vaga, em 2021, no superior tecnológico em Eletrônica Automotiva da Fatec Santo André, na fase pandêmica em que o ingresso ainda era decidido pelo histórico escolar. “Sempre trabalhei com análise de sistemas e sonhava em mudar de profissão”, confessa.
A convivência com adolescentes não foi um problema para quem já tinha criado dois filhos. Sua preocupação estava em não se tornar um entrave para a classe, não atrasar a turma. E nada disso aconteceu. Mas Oscar não minimiza a dificuldade de alguém com mais idade voltar para casa com um grande lote de tarefas para executar – missão difícil, mas não impossível.
“Algumas vezes, eu quase desisti”, conta. “Com mais idade a gente está mais cansado, mas tem jogo de cintura para se desembaraçar de tantos afazeres, encontrar um equilíbrio”, diz Oscar, a um semestre de concluir o curso. “É importante se atualizar, exercitar o cérebro.” Ele ainda não trocou de profissão, mas informalmente começa, aqui e ali, a atuar na nova área, já de olho em uma pós-graduação.
Dica de professor
Leandro Carneiro da Cruz, de 48 anos, trilhou caminho semelhante ao de Oscar e de Rosana, com um longo intervalo entre o casamento e a faculdade. E só acabou ocupando uma vaga no curso tecnológico de Gestão Empresarial na Fatec Cruzeiro – Waldomiro May por conta de um encontro fortuito com um professor de seus tempos de infância. “Ele quis saber se eu estava formado e, como encerrei os estudos no colegial, me indicou a Fatec”, conta. A vontade de estudar o assaltava com frequência; o custo de uma mensalidade, porém, acabava por desanimá-lo.
Saber que a Fatec oferecia ensino gratuito mudou a perspectiva de Leandro – e de um de seus filhos, Henrique, que se matriculou no mesmo curso quando o pai fazia o quarto semestre. “Foi por livre e espontânea pressão”, diverte-se Leandro. O filho queria “dar um tempo” antes de fazer uma faculdade. “Eu o pressionei para estudar. Hoje ele me agradece”, conta.
A mudança de profissão – e de área – aconteceu meses antes do Vestibular. Leandro trocou o comércio pela indústria, passou a trabalhar no período noturno, em uma empresa multinacional de fabricação de rodas, ao lado de Henrique, que está no quinto semestre. “Na indústria há espaço para o crescimento de pessoas formadas em Gestão Empresarial. Assim que abrir uma vaga onde trabalho, pretendo me inscrever”, conta o agora ex-aluno, formado em 2022.
Na linha de frente
“Durante as aulas, eu me sento na primeira fila para evitar distrações”, revela Luiz Longo, de 72 anos, aluno do curso de Automação Industrial da Fatec São Bernardo – Adib Moisés Dib. “Estudar na minha idade não é fácil”, ele alerta, em concordância com Oscar Bergamo. E isso depois de concluir dois cursos na Etec Lauro Gomes, na mesma cidade: Automação Industrial e Eletroeletrônica. O primeiro foi em 2019, depois de muitos anos sem frequentar os bancos escolares e com mais de 30 anos de trabalho no Metrô de São Paulo – o último cargo, antes de se aposentar, foi como supervisor de manutenção. Aí, não parou mais de estudar. “Tenho apreço pela Fatec, uma faculdade que tem nome, bons professores, cursos interessantes – tudo o que o mercado precisa”, elogia. Também é o lugar onde vem fazendo muitos amigos.
Mesmo aposentado, continua sendo chamado para projetos temporários em diversas linhas do metrô, embora esse já não seja o seu principal objetivo: “Minha prioridade é estudar. Tenho planos para uma pós-graduação”, declara.
Maria Cristina da Silva, a aluna de Gestão de Turismo da nossa primeira história, coloca entre os incentivos para a volta às aulas a expectativa de vida, que vem aumentando. “A pessoa que se aposenta aos 55 anos, por exemplo, ainda pode viver muito”, avalia. “O que ela vai fazer? Passar 30 anos na frente de uma televisão?”