Na semana passada, uma chuva forte surpreendeu a cidade de São Paulo. A queda de uma grande árvore sobre uma barraca, no Largo da Concórdia, provocou a morte de uma mocinha de 22 anos. No dia seguinte, a foto da moça foi exibida por todas as emissoras de TV e muitos se entristeceram ao reconhecê-la. Eu também me entristeci, bastante, pois eu a conhecia. Não a moça, a árvore. Durante os quase sete anos em que trabalhei no Largo da Concórdia, desenvolvi uma espécie de intimidade com ela.
O Brás, de um modo geral e, sobretudo, os entornos da estação de trem é um lugar feio. Em alguns pontos, chega a ser assustador, como nas proximidades do viaduto fronteiriço à estação, com suas muitas lojinhas, barracas de camelôs, hoteizinhos de quinta, onde prostitutas decadentes atendem sua clientela, mendigos e usuários de droga dormem e fazem as suas necessidades na passagem de acesso à estação, muito usado pelos ladrões para fazerem suas vítimas.
Esse local fez parte do meu trajeto ao trabalho por anos e anos. Um lugar que, se chove, alaga rapidamente, com a água fétida podendo chegar até a altura do joelho dos transeuntes. E, se não chove, alaga do mesmo jeito, com uma torrente de camelôs brasileiros, bolivianos e haitianos, que vendem todo tipo de coisa: roupas, CDS, perfumes, eletrônicos, bujigangas Ching-Ling, feijão verde, jaca, cocada, linguiças, óculos, relógios, bolsas, chaveiros, cigarros do Paraguai, calçados, bijouterias. Uma triste gente sem opção, que chega ao Brás de madrugada e espalha seus produtos no chão, disputando os melhores lugares e criando um labirinto no meio do qual é quase impossível transitar. Gente que, vira e mexe, sofre a ação da Polícia Militar ou da Guarda Civil e tem seus pertences tomados.
E lá, no meio de tudo isso, na esquina do largo, estava ela, linda, imensa, imponente, a minha amiga árvore, para cuja majestosa imponência eu olhava todas as manhãs, enchendo meu coração de alegria. Às vezes eu parava na esquina e ficava olhando pra cima, com ar de boba, deliciando meus ouvidos com a algaravia das maritacas que faziam seus ninhos nos altos galhos da belíssima araucária. E agora, estando longe de São Paulo, tive de saber, pela televisão, que minha imponente amiga caiu e, pior, na sua inevitável queda, sacudida por um vendaval, teve a tristeza de ferir pessoas e de causar a morte de uma bonita mocinha que, como eu, talvez também fosse sua amiga, talvez olhasse pra cima para admirá-la, talvez, nos momentos difíceis, se mirasse na sua força e aparente indestrutibilidade para reencontrar seu prumo.
No entanto, embora assustador, não foi o vento forte quem a destruiu, quem a derrubou, quem provocou a morte dela e da mocinha que trabalhava na banca sobre a qual ela despencou. Não, quem a destruiu foram os cupins! Fiquei estarrecida ao saber disso, ao ver na TV a imagem daqueles bichinhos tão frágeis, quase transparentes, que eram seus inquilinos, seus invasores, que ocuparam e destruíram seu tronco grosso e forte por dentro, sem denunciarem a sua presença, agindo na sombra, no silêncio, sem que ninguém pudesse imaginar que eles estivessem ali. Em desastres como esse, é comum se buscar um culpado, mas, dessa vez, não adianta culpar a negligência da prefeitura. Ninguém poderia saber o que acontecia no interior daquela majestosa árvore, não havia qualquer sinal externo. Sua casca era grossa, o tronco vigoroso e a ramagem abundante.
Durante anos, em diversos momentos, aquela árvore me levou a refletir sobre a vida e agora, em sua monumental e desastrosa queda, me leva a refletir mais uma vez. Quantas árvores caem, quantos sistemas, fortunas e impérios ruem, quantas vidas são destruídas por causa de bichinhos insignificantes, praticamente invisíveis, que vão roubando a seiva, invadindo o interior, contaminando todas as artérias, até quem um vento os faça ruir? Estamos vendo isso na política e na economia de nossa nação, estarrecidos com as revelações escandalosas e inimaginadas do estrago que provocou em nossas sólidas instituições o aparentemente frágil cupim da corrupção. Hoje nós ouvimos falar em números alarmantes, de tantos dígitos que nem sabemos calcular, mas, nenhum sistema de corrupção começa com milhões e, se entre os homens de nosso governo há velhas árvores carcomidas, de cascas podres e galhos retorcidos, árvores que já não florescem e nem produzem frutos, apenas assustam e oneram a floresta, há muitas árvores novas, robustas, grandes, belas, promissoras que, surpreendentemente, vão-se revelando à nossa incredulidade como árvores também contaminadas por esse maldito cupim.
Ninguém nasce corrupto, nenhuma família educa seus filhos para serem desonestos, traírem sua pátria, viverem de propinas. Ninguém é corrompido com milhões de dólares de uma vez. A coisa se instala aos poucos, devagarzinho, uma pequena troca de favores aqui, outra ali e, quando os transeuntes se dão conta, as belas árvores da floresta governamental estão no chão, destruindo tudo o que estiver na trajetória da sua queda.
Isso não acontece apenas com as árvores e com a política. Relacionamentos, famílias, impérios comerciais e industriais, reputações, saúde, sanidade, também correm o risco de serem destruídos dessa forma. E culpam-se as chuvas e os vendavais. Mas, não, não é a chuva e nem é o vento que fazem as árvores caírem. É o invisível, o insignificante, o imperceptível, os pequenos agentes das sombras, que vão minando por dentro, em pequenos gestos, palavras, hábitos, desatenções. Não se começa um vício com um quilo de cocaína, 50 pedras de craque ou um garrafão de pinga. Começa-se com o inocente cigarrinho de maconha, uma droga considerada tão zen que já é quase legal, ou uma cervejinha gelada. Num casamento, um pequeno flerte, uma conversinha sem compromisso na Internet, uma traiçãozinha banal, uma desatenção aqui, outra ali, uma palavra que magoa, um ciuminho de nada, um grito, um palavrão, um silêncio cínico. Numa empresa, uma concessão aqui, outra ali, um desviozinho acolá, a aquisição de matéria prima de menor qualidade, um acordo, uma propininha de nada para a obtenção de um favor político…
Como escrevi em meu artigo anterior, da mesma forma que são as pequenas coisas as que realmente contam, as que fazem o encanto da vida, também são as pequenas coisas que a destroem. Não, não foi a árvore quem matou a mocinha no Largo da Concórdia e nem foi o vento quem derrubou a árvore. O inimigo é sutil e age nas sombras e o perigo real a gente não vê, mas, as consequências…