Na sexta-feira da semana passada minha irmã submeteu-se a um procedimento cirúrgico para colocação de uma prótese no joelho esquerdo. Viajei para São Paulo para acompanhá-la durante a internação. Na manhã de sábado, o filho dela ligou para saber como ela estava, como tinha passado a noite. Ela respondeu que estava muito bem e eu me surpreendi ao ouvir a sua próxima frase: “Ah, filho, eu tenho tanto a agradecer, Deus tem sido tão bom comigo!”. Enquanto ela falava ao telefone, eu olhava para a cicatriz de cerca de 20 cm, com dezenas de pontos aparentes no seu joelho esquerdo. Essa cicatriz não é a única que ela tem no corpo. Ela tem uma de igual tamanho, da cirurgia feita em fevereiro do ano passado para colocar uma prótese no joelho direito e mais duas cicatrizes enormes em cada lado do quadril, onde também recebeu próteses de titânio devido ao desgaste provocado pela osteoartrose. Ao ouvi-la afirmar que tinha tanto a agradecer por Deus ter sido tão bom com ela, me perguntei de onde vinha essa força, esse ânimo, essa gratidão.
Uma pessoa que passou por dores atrozes durante anos, que teve dificuldade para andar e que, com menos de 60 anos, precisava se apoiar em uma bengala, uma pessoa que foi submetida a tantos procedimentos cirúrgicos, como pode dizer, com tamanha naturalidade, que tem tanto a agradecer por Deus ter sido tão bom com ela? Outra pessoa poderia estar se lamentando, praguejando e maldizendo a vida por ter passado por tudo isso. Muita gente faz dos problemas uma muleta em que se apoiar e justificar tudo, inclusive a grosseria, o mal humor, a falta de cortesia e de respeito para com os demais.
Lembrei-me do maravilhoso filme “A vida é bela”, que ganhou – merecidamente – o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999, desbancando o nosso “Central do Brasil”, que concorria na mesma categoria. O protagonista do filme, Guido Orefice, um judeu mandado para um campo de concentração em Berlim durante a segunda guerra mundial, fazia verdadeiros malabarismos para proteger o filho pequeno e convencê-lo de que todas as dificuldades por que passavam, a dura rotina do campo, a escassez de alimentos, tudo fazia parte de um jogo. Uma história que, ainda que inverossímil, leva os expectadores às lágrimas e nos mostra que algumas pessoas possuem uma força sobre-humana, uma capacidade extraordinária de encarar as atrocidades da vida, por mais terríveis que elas sejam, e encontrar um sentido, extrair algo de bom mesmo daquilo que parece o pior que um ser humano pode experimentar.
O filme era uma ficção, mas a minha irmã, ali do meu lado, recém-saída da sala de cirurgia, com aquele corte enorme, a perna inchada e dolorida, era uma pessoa real, uma situação real. Eu não sei de onde vem essa força, esse ânimo, essa esperança, essa confiança, mas sei que faz muito bem estar perto de pessoas assim. Pessoas que não reclamam, que se superam, que veem sempre o lado bom da vida. Para a minha irmã, parece não importar o fato de ser aquela a sua quinta cirurgia e a quarta prótese colocada em seu corpo, o que realmente importa para ela é ter arrumado uma solução para sua dor, ter encontrado bons médicos, ter um convênio que lhe permitiu fazer as cirurgias necessárias.
Eu já a vi chorando de dor várias vezes, já corri com ela para o pronto-socorro e já acompanhei o mal-estar provocado pelos efeitos colaterais das medicações fortes que precisava receber, incluindo a morfina, mas, nunca a vi praguejando ou perguntando para Deus por que Ele lhe deu tantas dores ou lhe permitiu tanto sofrimento, como já presenciei outras pessoas fazendo, por coisinhas muito menores, algumas até insignificantes, ligadas à estética ou a coisas materiais. Tenho também o privilégio de conviver com um homem que perdeu um filho de 19 anos e, por pior que seja essa dor, certamente a pior dor que alguém possa enfrentar na vida, e por mais que a sua saudade lhe arranque lágrimas doridas, em momento algum eu o vi acusar ou questionar a Deus, nunca o ouvi dizer: “Por que eu? Por que comigo?”. Ao contrário, sua fé aumentou e lhe deu um norte concreto: a certeza de que um dia, demore o quanto demorar, vai encontrar o seu filho de novo e poder tê-lo em seus braços com o sem pressa da eternidade.
Eu me refiro aqui a duas pessoas muito próximas, minha irmã e meu marido, mas, são muitos os exemplos de superação, gratidão, aceitação, boa vontade que vemos por aí. E as pessoas que agem assim são as pessoas que fazem a diferença no mundo, são aquelas que, em vez de revidar, perdoam as ofensas, são aquelas que, em vez de brigar por seus direitos, sabem ceder a vez, compreender e respeitar a fraqueza do outro. Enquanto houver pessoas assim – e sempre haverá – este nosso mundo será um lugar onde vale a pena estar.
Certa vez, li numa camiseta que Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos. Eu, sinceramente, não acredito em escolhidos, em filhos diletos e diferenciados dos demais; acredito, piamente, que Deus nos ama de igual maneira, independente do que sejamos, mas não posso deixar de reconhecer que há seres que se destacam, pois, num mundo onde muitos gozam de privilégios como a saúde perfeita, a beleza, a riqueza, as posições de destaque, as boas oportunidades, as famílias equilibradas, as que realmente nos ensinam o quanto a vida é bela são aquelas muitas vezes privadas de atributos como esses; são aquelas que enfrentam as situações mais difíceis, as vias mais dolorosas, as trajetórias mais íngremes as que nos dão as mais preciosas lições de fé, amor, esperança, gratidão e civilidade.
Se há escolhidos, se há seres diferentemente capacitados, eu não sei. Eu apenas sei que há seres que fazem Deus sorrir e que muitas vezes nos comovem, nos fazem chorar e repensar o nosso modo de ser, porque a vida é bela, independente da dose de sofrimento que tenhamos de experimentar enquanto a desbravamos, enquanto caminhamos por aqui. E se eu nem sempre consigo ser grata por tudo de bom que tenho, ao menos o sou por ter pessoas desse quilate fazendo parte da minha vida e me ensinando, em palavras e gestos tão simples, as mais preciosas lições.