Le ciel est bleu, réveille-toi! C’est un jour nouveau qui commence. Le ciel est bleu, réveille-toi! Les oiseaux chantent sur les toits. Réveille-toi! (La marche des jeunes – Charles Trenet)
Quando entrei no Ginásio, em 1976, ainda havia aulas de francês, ministradas pela Dona Carmem Perez Nunes. Depois da aposentadoria dela, o francês deixou de ser ensinado, sendo substituído pelo inglês, com o qual eu briguei logo de cara, pois ele não tinha nem de longe a sonoridade e a elegância do francês. Minha aversão pelo inglês foi tão grande que até hoje eu não aprendi o idioma, que sempre considerei um mal necessário, porém, evitável e o evitei. O idioma francês me remetia a um mundo utópico, de céu sempre azul com pássaros cantando em cima dos telhados. Para mim, o francês era uma chave que abria um mundo mágico e, na minha inocência de menina, eu nem imaginava a França como um país, mas, como um paraíso, um lugar lindo onde havia céu azul, pássaros e paz.
Até hoje guardo na lembrança palavras, frases, expressões e músicas que a Dona Carmem nos ensinou. Nem sempre sei o significado, mas, a musicalidade das palavras, não me saiu da memória. A citação com que comecei o artigo é de uma das canções que a dona Carmem tentou ensinar para nós, La marche des jeunes e ultimamente eu tenho me pegado com bastante frequência cantando o trechinho dela que me lembro e cuja tradução é: “O céu é azul, acorde! É um novo dia que começa. O céu é azul, acorde! Os pássaros cantam nos telhados, acorde!” .
Todas as manhãs, enquanto preparo a comida para os meus cachorros, coloco bocados de arroz cozido sobre o muro e vêm pássaros de todos os lados fazerem seu desjejum. E, enquanto recolhem a comida com seus biquinhos ávidos, eles cantam em cima do muro, enchendo de alegria o meu quintal e a minha vida. Algo tão simples e tão imenso.
Como meu marido trabalha até às 23h00, ele acorda um pouco mais tarde e às vezes liga a TV para assistir aos noticiários matinais. Normalmente o foco é Brasília e vemos os dejetos escorrendo desse corpo podre que é a nossa política. Não posso dizer que nunca houve tanta corrupção, mas posso afirmar que nunca se investigou tanto e nunca se revelou tanto das falcatruas e roubalheiras de nossos poderes mal constituídos, mas, o que mais causa indignação é ver as manobras que são feitas para se evitar a punição dos culpados ou liberar aqueles que a justiça conseguiu prender, mudando até as regras da justiça! Coisas que antes eram feitas na surdina, por baixo dos panos, pra ninguém saber, como diz uma música de Ney Matogrosso, agora são feitas de forma escancarada, não mais na calada da noite da desonra, mas, à luz do dia, na cara de todo mundo. E enquanto somos assolados por essa revoltante miséria moral, somos distraídos com exposições bizarras e discussões mais bizarras ainda em torno delas e, como cereja do bolo, atos terroristas, atiradores e vigilantes incendiando o corpo e matando centenas de jovens e um punhado de criancinhas com sua sandice, sua loucura. Ah, claro, esse pudim também tem calda, uma calda feita do sangue da violência do crime organizado ou dos crimes passionais, que vão de homens matando mulheres, namoradas e às vezes até os filhos a cretinos despejando esperma em passageiras de ônibus. Tudo servido na requintada bandeja da impunidade.
Se você vê o jornal de qualquer emissora, vê isso, misturado a alguma catástrofe natural que parece estar acontecendo dia sim e outro também; se assiste novelas, tem mais do mesmo, se procura um programa cultural, tem mais do mesmo e acaba se sentindo um refém, quando não um idiota que já nem sabe mais se posicionar e tem medo de dizer que algo é errado e ser assolado por todos os lados com emblemáticas afirmações de que é certo, ou dizer que é certo e ser enxovalhado com gritos de que é errado. Parece que vivemos num descontrole total, num caos sem precedentes e o resultado disso é a eleição de Trumps e Bolsonaros e a torcida para que os Estados Unidos lancem logo suas potentes bombas sobre a Coréia do Norte e os militares assumam o poder do nosso país para tentar conter o que não pode ser contido. O que sobressai de tudo isso, mais do que chegarem ao poder oportunistas travestidos de ditadores do bem é a perda da fé e da esperança.
Perdemos a fé no ser humano, perdemos a fé em nós mesmos e perdemos a fé em Deus, justamente quando deveríamos acreditar muito mais na capacidade do ser humano de optar pelo bem e de praticá-lo, acreditar na nossa capacidade de escolher, de decidir pelo que é correto, pelo que é moral, pelo que é justo e, sobretudo, acreditar que Deus está no comando e que, na história da humanidade, não houve caos que não se revertesse, não houve desordem que não se transformasse e não houve mal que prevalecesse, simplesmente porque tudo passa e porque não apenas o nosso mundo, mas o universo está regido por leis justas e por uma harmonia que vai muito além de nossos achismos, partidos ou indignações, uma harmonia que está no canto dos pássaros que vêm se alimentar sobre o meu muro, uma sinfonia de pardais que me mostra, todas as manhãs, que vale a pena sorrir, que vale a pena acreditar, que vale a pena amar, porque embora isso tudo se assemelhe ao fim do mundo, esse mundo não terá fim, mas sim passará por transformações que o farão melhor.
Até mesmo para os crentes existe a alternativa de parar na cruz e fazer a apologia do eterno sofrer ou avançar três dias e chegar no túmulo vazio, na ressurreição e na ascenção daquele que, com apenas três anos de atuação, mudou o cenário do mundo e dividiu a história no meio. Creio que nunca se falou tanto em apocalipse e cumprimento de profecias e muitos fanáticos até se prepararam para um arrebatamento que não houve e a colisão com a Terra de um planeta imaginário, no dia 23 de setembro, que também não ocorreu. Muitos afirmam que é o fim, mas, o próprio livro do Apocalipse, embora pareça trágico, é um livro que fala de justiça e de esperança e o seu último capítulo, que encerra a Bíblia, é um texto positivo e uma promessa de vitória e de fim, não dos tempos ou do mundo, mas, fim do mal, das injustiças, das calamidades, da violência e da desolação à qual o coração humano se entregou, pela qual se deixou levar. Por pior que estejam as coisas, por mais sangue e lama que escorram sobre todos nós, crentes ou ateus, não podemos nos esquecer que há um controle no Universo. Há um salmo que diz que Deus conhece os pássaros que voam pelos céus e os seres vivos que se movem pelos campos. Que não percamos a simplicidade de nos deliciar com “le ciel est bleau” e com os pássaros, conhecidos por Deus, que cantam em cima dos telhados e dos muros e que sejamos simples, confiantes e alegres como esses pardais.